As paredes do consultório pareciam se fechar lentamente ao meu redor. O ar tinha um gosto metálico, e o cheiro de desinfetante grudava na pele como culpa. O médico me olhava com um pesar que eu já conhecia — o mesmo olhar que vi anos atrás, quando diagnosticaram Enrico. Mas agora era a minha sentença. Minha vez de ouvir o veredito.
— Clara… sinto muito. — ele começou, a voz grave e firme, como se quisesse amortecer a dor com neutralidade. — A progressão da doença se acelerou. Seu corpo está começando a rejeitar o remédio. Os exames mostram falência em alguns órgãos… o quadro é irreversível.
Fechei os olhos por um segundo. Só um segundo. Porque encarar aquela realidade de frente doía como se alguém rasgasse meu peito por dentro.
— Quanto tempo?
Ele hesitou. Um segundo a mais do que o necessário.
— Três meses. Talvez um pouco menos, dependendo de como seu organismo reagir.
Três meses.
Noventa dias.
O que alguém faz quando sabe exatamente quanto tempo lhe resta?
Assenti em silêncio, sem chorar. Acho que, no fundo, eu já sabia. Meu corpo gritava por dentro há muito tempo, mesmo quando minha boca ainda insistia em sorrir.
— Quero continuar com o remédio — pedi. — Até o fim. Quero estar consciente.
— Claro. Vamos manter o tratamento de suporte pelo tempo que pudermos.
Peguei a receita com mãos trêmulas e agradeci. Agradeci como se alguém pudesse ser agradecido pela notícia de que está morrendo.
Saí do consultório com passos lentos, abraçada ao próprio corpo como se quisesse me impedir de desmoronar ali, no meio do corredor. O hospital estava movimentado naquela manhã, com gente entrando e saindo de elevadores, funcionários passando com pastas, pacientes em cadeiras de rodas. Uma enfermeira me desejou bom dia. Eu nem respondi.
Andei até o térreo, e então... parei.
Fiquei estática.
Na minha frente, alguns metros adiante, saindo de uma das alas com placas azuis, estavam Enrico e Sabrina.
A área obstétrica.
Ela estava com uma das mãos na barriga e a outra segurando o braço dele, como se o mundo inteiro precisasse ver que estavam juntos. Os dois sorriam. Não aquele sorriso educado e sem graça que se dá por obrigação. Era um sorriso íntimo. Cúmplice.
Ele disse algo ao ouvido dela e ela riu, inclinando-se para beijar o rosto dele. Beijar o meu marido. No hospital onde eu acabara de receber minha sentença de morte.
A visão me atingiu como uma colisão. O chão sob meus pés parecia ter desaparecido. Tudo ao meu redor perdeu som e cor. Foi como cair, cair e continuar caindo, em silêncio, para dentro de mim mesma.
Por um momento, desejei que ele me visse. Que nossos olhos se cruzassem. Que ele se envergonhasse. Mas Enrico passou por mim sem sequer notar minha presença. Tão cego pela euforia da nova vida, que nem percebeu a morte passando por ele.
A morte que ele mesmo plantou.
Vi os dois saírem pela porta automática. Vi Sabrina se inclinar sobre ele como se já pertencesse àquele lugar. Vi a mão dele repousar com naturalidade sobre a barriga dela, como se ali estivesse seu futuro, como se aquilo fosse amor.
E ali eu soube.
Eu estava sozinha.
Sozinha até o fim.
Não corri atrás, não gritei, não chorei. Apenas virei as costas e fui embora.
Mas dentro de mim, alguma coisa nasceu naquele momento.
Uma chama.
Fria.
Clara.
Calculada.
Não era raiva. Nem ciúmes. Era algo mais fundo. Era a certeza de que ele não merecia o perdão. De que a minha história não terminaria apenas com um ponto final silencioso e injusto. Eu não morreria apagada. Eu morreria lembrada. Gravada.
Decidi, ali mesmo, que escreveria a primeira carta naquela noite.
Não para salvá-lo.
Mas para condená-lo.
A noite chegou cedo, como se o mundo inteiro soubesse que havia algo de errado. Lá fora, o vento assobiava pelas frestas da janela, empurrando folhas secas contra o vidro como se quisesse invadir meu quarto e arrancar meus segredos à força.
Mas não havia mais segredos.
Não depois do que vi.
Não depois do que senti.
Enrico ainda não tinha voltado. E eu não me importava mais com as desculpas que ele inventaria. A essa altura, já não havia mais nada que ele pudesse dizer para costurar o que foi rasgado.
Minha alma estava esgarçada.
Minhas forças se esvaíam.
E, ainda assim, havia dentro de mim uma clareza dolorosa: eu precisava deixá-lo com a única coisa que ele nunca seria capaz de fugir.
A verdade.
Caminhei até a cômoda, puxei a gaveta inferior e retirei de lá um maço de papéis e um envelope azul-marinho que sempre me pareceu bonito demais para ser usado. A caneta escorregou entre meus dedos trêmulos, mas eu a segurei com firmeza.
Sentei-me na escrivaninha. O silêncio ao meu redor parecia atento. Quase respeitoso.
Respirei fundo. E escrevi.
---
“Carta 1
Para o homem que me matou,
Você ainda não sabe que me matou. Mas matou.
Não com uma arma. Nem com veneno. Nem mesmo com uma palavra. Você me matou com gestos. Com silêncios. Com ausências calculadas. Com mentiras ditas entre um beijo e outro. Com promessas quebradas enquanto eu dormia do seu lado, acreditando que o amor era suficiente.
Hoje, o médico disse que eu tenho três meses. Três. Não são só números, Enrico. São despedidas. São jantares que nunca teremos, viagens que não vamos fazer, filhos que nunca vou conhecer. São horas que você jogou fora com alguém que não carregou sua dor, não lutou pela sua vida, não dividiu sua febre.
Hoje, eu vi você com ela. Com as mãos na barriga dela, com um sorriso de quem tem o futuro nas mãos. Eu estava a poucos metros de vocês, voltando do consultório onde recebi a sentença. E você… você sequer me viu.
Você salvou seus filhos.
E me deixou morrer sozinha.
E o que dói mais não é a traição. Não é o abandono. É saber que você me deixou morrer em silêncio, achando que estava tudo bem.
Eu poderia gritar. Poderia te odiar. Poderia expor tudo.
Mas escolhi outra coisa.
Escolhi escrever.
Cada carta que você receber, depois que eu partir, será um pedaço de mim. Um pedaço que você destruiu. Mas também será meu grito, minha justiça, minha memória. Você não vai me esquecer, Enrico. Não vai.
Porque, no fim, fui eu quem te amou até o último fio de vida.
E você, quem arrancou cada um deles, um por um.
Com amor,
Ou o que restou dele,
Clara.”
---
Dobrei a carta com cuidado, como quem embala um pedaço do próprio coração. Coloquei no envelope e escrevi a data no canto inferior.
“Entregar uma semana após minha morte.”
Coloquei a carta na caixa de madeira que havia escondido sob a cama. Era uma caixa de memórias antes. Agora, seria uma caixa de justiça. E eu escreveria uma por uma, até meu corpo não aguentar mais segurar uma caneta.
Enrico ainda estava lá fora, vivendo o futuro com outra.
Mas eu…
Eu começava a escrever o fim.
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Atualizado até capítulo 23
Comments
bete 💗
seja forte mostre que você e melhor que ele.❤️❤️❤️❤️❤️
2025-07-03
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rafamendes
nossa
2025-07-24
0