A Noiva do Dono do Jogo
O frio da madrugada parecia cortar a pele de Helena como agulhas invisíveis. Eram quase quatro da manhã quando ela desceu do ônibus, com os pés doloridos, os olhos pesados e a alma em farrapos. O uniforme da padaria estava sujo de farinha e o avental manchado com café que havia derramado em si mesma horas antes. Mas nada disso importava.
Na bolsa, um envelope grosso repousava com o peso de um mundo inteiro. Dentro dele estavam todos os centavos que havia conseguido juntar nos últimos seis meses — vendendo tudo o que possuía, aceitando trabalhos insalubres, trocando a juventude pela exaustão.
E mais do que isso: dentro daquele envelope havia um pedaço de seu próprio corpo. O valor que faltava para completar os cento e oitenta mil reais veio com um custo que ninguém jamais poderia imaginar — o rim que ela vendera em um galpão clandestino, no subúrbio da cidade.
Helena atravessou a rua quase deserta com passos trêmulos. Cada passada ecoava como um sussurro de sacrifício. Seus olhos, avermelhados, se fixaram na fachada do hospital particular onde Caio estava internado.
“Hoje, tudo vai mudar.”
Ela repetia isso como uma oração. Como uma última esperança.
Caio precisava de uma cirurgia urgente no coração. Segundo ele, era hereditário, degenerativo, e raríssimo. Disse que havia escondido por medo, vergonha. Que não queria preocupá-la. Que a amava demais para vê-la sofrendo.
Helena acreditou. Sempre acreditava.
Chegando à recepção, ela sorriu para a enfermeira, mesmo que o sorriso parecesse dolorido.
— Quarto 308, por favor — disse, com a voz quase apagada.
A recepcionista assentiu, e ela seguiu pelo corredor acarpetado com passos lentos. Quase tropeçou ao subir o pequeno degrau da ala restrita, mas seguiu em frente. Estava nervosa. Mas era um nervosismo bom. Pensava que, talvez, após entregar o dinheiro, Caio ficasse emocionado. Prometesse uma vida nova. Que se casassem. Que tudo tivesse valido a pena.
Mas então, quando se aproximou da porta do quarto, algo fez seu corpo parar.
Vozes.
— …Ela é uma piada, Caio. Sério, eu fico chocada com o nível de burrice — dizia uma mulher. A voz era aguda, debochada, carregada de desprezo. — Você conseguiu fazer ela acreditar em tudo!
Helena franziu o cenho. Encostou-se à parede ao lado da porta entreaberta. O coração começou a bater de forma errada. Instintiva. Um pressentimento gelado arrepiou seus braços.
— Mano, até eu fiquei com pena quando você falou que tava morrendo. E ela foi lá e... puff, vendeu um rim! — outra voz, masculina, zombava. — Isso é doentio. Mas genial!
— Vocês estão subestimando — respondeu Caio, e Helena estremeceu ao reconhecer a voz do homem que amava. — A garota é apaixonada. Apaixonada e burra. Um combo perfeito pra quem quer brincar. Eu só queria ganhar a aposta com os caras da faculdade. Mas depois virou um hobby.
A gargalhada dele cortou o peito de Helena. Um som que tantas vezes a acalmou, agora a feria.
— E o que vai fazer com ela quando souber que você é herdeiro dos Vasconcellos? — perguntou um dos rapazes. — Vai se casar e transformar ela na nova princesinha da mansão?
— Claro que não — respondeu Caio com escárnio. — Aquilo ali não nasceu pra luxo. É gente de barraco. Mal sabe usar um garfo sem olhar pros outros. Vai me envergonhar.
— Você é cruel — comentou a mulher, rindo. — Mas... é tão gostoso ver você brincando com os pobres.
Helena parou de respirar.
As mãos dela tremiam. A bolsa escorregou do ombro, caindo no chão com um baque abafado. O envelope com o dinheiro deslizou para fora, parando a poucos centímetros de seus pés. Ela nem percebeu. O som das palavras ainda ecoava como estilhaços na mente.
“Brincando com os pobres.”
“Gente de barraco.”
“Uma aposta.”
O mundo parecia ter desabado ao redor. O hospital girava. A parede já não sustentava mais seu corpo. Tudo em que acreditava — cada gesto de carinho, cada palavra dita no escuro, cada promessa de “pra sempre” — havia sido uma mentira construída sobre a vaidade de um menino mimado.
A traição não era apenas amorosa. Era existencial. Humana. Cruel.
Ela recuou um passo, tentando engolir o choro. Mas as lágrimas vieram quentes, ardendo. Um soluço subiu pela garganta, mas ela o engoliu com força.
“Não chore aqui. Não por ele.”
E então ela se virou.
Correu. Correu com tudo o que restava de si. Cruzou os corredores do hospital como uma fugitiva. Queria arrancar o uniforme, a pele, o nome. Queria deixar para trás quem havia sido.
Já na rua, com o rosto encharcado e o corpo em choque, Helena se ajoelhou na calçada, tentando puxar o ar que parecia fugir dos pulmões. Ali, sozinha, com o coração rasgado e o corpo mutilado, ela viu pela primeira vez a mulher que estava nascendo em seu lugar.
Helena morreu naquele dia.
Mas algo — ou alguém — nasceu.
Alguém que jamais voltaria a se ajoelhar por amor.
Alguém que, em breve, carregaria um novo sobrenome.
E pisaria naquele império com a cabeça erguida.
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Atualizado até capítulo 56
Comments
bete 💗
interessante ❤️❤️❤️❤️❤️
2025-07-01
0
Zilma sena Santos
começando hoje,29/06/2025! 22:45
2025-06-30
0
Dulce Gama
começando 29/06/25
2025-06-29
0