Capítulo 4

Thiago não dormiu aquela noite.

Ficou deitado no colchão fino de seu estúdio, olhando para o teto mofado, ouvindo o barulho da rua atravessar a janela mal vedada. O peito ainda doía da discussão com Gael, mas era uma dor antiga, familiar. Não era a primeira vez que alguém gritava com ele como se sua existência fosse um erro.

A primeira vez foi aos dezessete.

Era uma sexta-feira, véspera de feriado. A mãe encontrou mensagens no celular. Coisas simples: um “eu gostei de te ver hoje” de um colega da escola. Um coração. Um beijo digitado. Pequeno demais pra ser crime. Grande demais pra ser aceito naquela casa.

A conversa foi rápida.

— Você é… isso?

— Isso o quê?

— Você sabe. Esse tipo de gente.

O pai não falou nada. Só olhou, com nojo. Como se Thiago tivesse deixado de ser filho e virado um corpo estranho.

Duas semanas depois, a mala estava na calçada. Com ela, cinquenta reais escondidos num bolso, um casaco surrado, e um aviso: “Quando quiser se consertar, volte.”

Ele não voltou.

Dormiu dois dias na casa de um amigo que dividia quarto com mais dois. Depois, arranjou trabalho num mercadinho, foi ajudado por uma professora que lhe conseguiu vaga num projeto social. Estudava de manhã, trabalhava à tarde, limpava escritórios à noite. Pegou ônibus em pé, passou fome, chorou em silêncio no banheiro de padaria. Mas nunca se vendeu. Nunca se calou. E nunca pediu perdão por ser quem era.

Se formou em Administração com honra, apesar de ninguém da família estar lá pra ver. Não houve flores. Nem palmas. Mas ele tinha a si mesmo — e isso, descobriu, era mais do que muita gente.

Agora, aos 25 anos, sentado numa cadeira desconfortável de um estúdio alugado, Thiago encarava sua nova vida. Tinha um emprego no andar 32, um chefe que parecia feito de pedra, e uma mistura confusa no peito que oscilava entre desejo, raiva e esperança.

E mesmo que o mundo ainda o machucasse, ele não era mais aquele garoto expulso com uma mala e um coração partido.

Era um homem.

Machucado, sim. Mas forjado no abandono e lapidado na resistência.

E ele ia subir quantos andares fossem necessários pra provar — não pros outros, mas pra si mesmo — que nada do que fizeram com ele o impediu de ser inteiro.

O sexto dia começou estranho.

A tensão com Gael ainda pairava no ar como fumaça invisível, e embora ele não tivesse dirigido mais do que duas palavras a Thiago desde a discussão, parecia que seu olhar estava mais… atento. Não mais gentil. Só mais demorado.

Mas o que realmente fez o chão de Thiago balançar não veio dele.

Veio do café da manhã no refeitório dos funcionários, onde Thiago, exausto e faminto, trocou algumas palavras com Rafael, chefe de RH — um homem bem-humorado, sorridente, que o tratava com respeito desde o primeiro dia.

Uma conversa sobre café virou elogio. Um elogio virou riso. Um riso virou curtida em rede social corporativa. Uma curtida virou… boatos.

Foi depois do almoço que Thiago ouviu.

— Já viu o novo assistente do doutor Ferraz? Tá se jogando pra cima do Rafael. —

— Vi os dois trocando likes. Deve ser viadinho mesmo.

— Claro. Olha o jeito dele. Sensível demais. Aposto que tá tentando subir na base do cu.

A voz vinha do banheiro. Porta entreaberta. Thiago estava dentro, mudo, ouvindo. Reconheceu os risos abafados, o tom venenoso. Um dos vozes era de um analista do financeiro. Outra, do jurídico.

Sentiu o estômago revirar.

De novo não, pensou. Não aqui.

Voltou pra mesa com as mãos frias. Não conseguia digitar. Não conseguia olhar ninguém nos olhos.

E então, a pior coisa aconteceu.

Gael passou por ele. Parou. Olhou.

E naquele segundo, no olhar dele, havia uma sombra de algo que Thiago não soube ler. Desprezo? Curiosidade? Raiva?

Ou talvez o mais perigoso de tudo: nada.

A indiferença queimava mais do que qualquer grito.

Thiago quis levantar, sumir, gritar, explicar. Mas não disse nada. Ficou ali, como quem tenta se encolher dentro da própria pele. A insegurança o invadiu como uma onda gelada.

— Eles vão me mandar embora — sussurrou pra si mesmo.

Porque era isso que o medo fazia: fazia até os mais fortes duvidarem da própria existência.

Mas ele ficou. De novo.

Mesmo com o coração apertado. Mesmo com o suor frio nas costas. Mesmo com a certeza de que, mais uma vez, ser quem era podia custar tudo.

E no meio daquele silêncio opressor, ele fez uma promessa muda:

“Não vou correr. Nem dessa vez.”

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Comments

Fatima Gonçalves

Fatima Gonçalves

CARAMBA O POVO DA LÍNGUA GRANDE PRECONCEITUOSOS

2025-10-11

5

Clesiane Paulino

Clesiane Paulino

tem gente que tem a língua mais venenosa do que de uma cobra😡

2025-10-25

1

Ana Lúcia

Ana Lúcia

o bando de hipócritas

2025-10-24

0

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