"Às vezes, o medo não grita. Ele sussurra enquanto a gente tenta parecer normal."
Quarto de Clara | Domingo à noite
O som da borracha no papel era suave, mas constante. Clara estava sentada na escrivaninha, cercada de anotações, partituras rabiscadas e o violino descansando ao lado. Uma caneca de chá pela metade esfriava lentamente. A concentração era visível no franzir da sobrancelha.
A porta entreaberta se abriu com um rangido.
— Rafaelll... o que você quer? — perguntou Clara sem tirar os olhos da folha.
— Eu quero um lápis. Me empresta?
— Tá. — Ela puxou um da caneca com canetas e estendeu para ele. — E fecha a porta.
Rafael pegou o lápis. Antes de sair, ficou olhando para ela por alguns segundos, como se tivesse esquecido o motivo de ter entrado ali.
— O que foi agora?
— Nada não. — Ele deu de ombros. — É que... você ainda tá fazendo música?
— Sim. Eu preciso terminar uma peça pra ventos logo. A audição é mês que vem.
— Você vai ganhar, né? — ele perguntou como se fosse óbvio.
— Não sei, Rafa. Só tô tentando terminar sem surtar.
Rafael assentiu, já satisfeito com a resposta. Deu meia-volta e saiu do quarto.
— Boa sorte com suas notas.
Clara sorriu sozinha, voltando para a partitura. Mas agora a melodia que surgia parecia ter um sorriso diferente, como se Luna tivesse deixado um acorde escondido ali.
Mercado de Bairro
Cecília empurrava o carrinho com uma expressão indignada.
— Aí, essas frutas além de estarem caras, estão feias. Como pode um absurdo desses?— reclamava, pegando um maracujá murcho com a ponta dos dedos.
— Você sempre reclama das frutas.— disse Clara, que empurrava o carrinho devagar.
— Mas é porque sempre tem motivo! A inflação tá me perseguindo, eu tenho certeza. — Ela devolveu a fruta para a prateleira como se ela tivesse insultado pessoalmente.
Clara riu, distraída. Estava com o celular na mão, lendo uma mensagem de Luna:
"Hoje quero te mostrar uma canção nova. Traz o violino se der. "
— Você sorriu. Foi ela? — Cecília perguntou, cutucando o ombro da amiga com uma maçã.
Clara assentiu. — Ela me manda música como se fossem bilhetes secretos.
— Isso é bonito. Você já pensou em compor com ela? Tipo, de verdade? Fazer uma música só de vocês?
Clara hesitou. — Acho que tenho medo. De ser muito íntimo. Ou de não ficar bom.
— Clara... você e ela já são uma música. Só falta dar play.
Estação Paraíso | Segunda-feira, 18h10
Luna esperava. As pessoas passavam, apressadas, sem reparar na artista sentada entre o fluxo de concreto.
Quando Clara chegou, com a mochila e o estojo do violino nas costas, Luna abriu um sorriso tão grande que parecia fazer eco.
— Achei que hoje você ia fugir de mim.
— E perder sua canção nova? Jamais.
— É um esboço ainda. Mas pensei em você quando escrevi.
Ela dedilhou os primeiros acordes. A melodia era suave, mas com uma tensão por trás. Como se fosse uma dança entre o querer e o não poder.
Clara fechou os olhos. O som da cidade parecia diminuir.
Depois de um minuto, Luna parou e olhou para ela.
— Você... consegue tocar alguma coisa em cima? Algo que complemente?
Clara assentiu. Pegou o violino. Tocou uma nota, depois outra. E de repente, estavam em sintonia. Uma harmonia entre o violão e o violino. Entre duas pessoas que ainda não sabiam colocar em palavras o que sentiam.
Quando terminaram, Luna respirou fundo.
— Você compôs comigo. Viu? Foi leve.
— Foi.
— Você tá com medo de sentir o que tá sentindo, né?
Clara mordeu o lábio, surpresa.
— Eu só... nunca tive coragem pra isso.
— A gente começa com música. O resto a gente aprende com o tempo.
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Atualizado até capítulo 41
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