Entre Canções e Silêncios

Entre Canções e Silêncios

Notas Fora da Linha

Estação Paraíso.

Clara desceu as escadas rolantes com o estojo do violino pressionado contra o peito, como se aquele objeto fosse seu escudo contra o mundo. O fone de ouvido tocava um trecho de Bach repetidamente. Ela precisava decorar cada nuance antes da aula de técnica no conservatório.

No fundo da estação, entre os sons mecânicos dos trens e a pressa dos pés apressados, uma melodia diferente escapava pelas frestas do concreto.

Era um violão.

Não clássico. Não ensaiado. Não previsível.

Era vivo.

Clara quase passou direto, mas algo naquele som a puxou. E então viu.

No chão, sentada em cima de um tapete fino e com uma mochila surrada ao lado, uma garota tocava e cantava com os olhos fechados. O cabelo castanho-avermelhado preso num coque malfeito, calça rasgada no joelho, e um colar com um pingente de concha no pescoço.

— “Se você parar, ela vai te notar.”– disse sua própria mente, como um alerta.

Clara virou o rosto, corando, e apressou o passo.

Mas, tarde demais.

— Ei! — a voz alegre a chamou. — Você tava ouvindo, né?

Clara parou, devagar, e olhou por cima do ombro. Luna sorria. Um sorriso largo, despreocupado, como se o mundo fosse sempre gentil.

— Desculpa... eu tava só... ouvindo um pouco.

— Pode ouvir mais. Ninguém paga ingresso aqui.

Ela piscou, brincalhona. Clara deu um passo em direção, hesitante. Luna bateu com a mão ao lado dela no tapete, como um convite.

— Só um pouco — disse Clara, quase num sussurro.

Sentou-se na ponta do tapete. O chão estava frio, mas o som era quente. Luna voltou a tocar. Era uma canção suave, em português, sobre alguém que se sentia invisível até encontrar um olhar. Clara ficou sem saber onde olhar. As unhas curtas de Luna, os acordes que ela fazia, o jeito que seus olhos brilhavam quando cantava.

Quando terminou, Luna virou para ela com um ar de desafio.

— Sua vez.

— O quê?

— Você tem cara de quem toca alguma coisa. E anda com um estojo de violino como se fosse extensão do corpo. Me engana, não.

Clara ficou vermelha.

— Eu... só estudo.

— Então deve tocar bem. Toca pra mim?

Ela hesitou. Nunca tinha tocado fora da sala de aula. Ainda mais na rua. Ainda mais pra uma estranha. Ainda mais pra **ela**.

— Não trouxe o arco.

Mentira.

— Então amanhã você traz — disse Luna, com um sorriso que parecia saber de tudo.

Clara riu, meio nervosa. E levantou-se.

— Eu vou me atrasar.

— Então até amanhã, pontual.

Ela hesitou mais uma vez. E depois foi embora, com o som da risada de Luna ecoando nas escadas da estação.

Casa de Clara – Mais tarde, naquela noite.

— Você anda distraída — disse sua mãe, enquanto cortava legumes com precisão matemática. — Errou duas notas no ensaio de hoje.

Clara não respondeu. Pegava a salada sem vontade.

— O que foi? A audição te assusta? Você já sabe a peça de cor.

— Não é isso, mãe.

— É sim. Você tem medo de não ser perfeita. Mas a perfeição é o mínimo. Ou você quer viver como esses artistas de rua, tocando pra esmola?

Clara largou o garfo.

— Eles não tocam pra esmola. Tocam pra viver.

Marta ergueu o rosto.

— Que tipo de pensamento é esse?

Clara se levantou da mesa sem terminar.

Dia seguinte — Estação Paraíso, 6h45.

Ela levou o violino. Com o arco.

Luna estava lá, como se nunca tivesse saído. Mas agora com uma caneca térmica na mão e uma flor presa no cabelo.

— Bom dia, pontual.

— Você estava esperando?

— Claro. Você prometeu, não prometeu?

Clara ficou de pé por alguns segundos, até que Luna abrisse espaço no tapete.

— Vamos. Toca logo antes que o mundo comece a correr demais.

Clara respirou fundo. Tirou o violino. Luna a olhava com uma curiosidade calma, sem pressão, diferente dos olhos duros de sua professora, da rigidez da mãe, da comparação constante com os outros.

Ela tocou um trecho de Debussy. E depois, meio sem pensar, um pedaço de uma música que ouvira Luna cantar no dia anterior. Fez uma ponte entre os dois mundos.

Luna ficou em silêncio.

— Você escutou a letra.

Clara assentiu, sem olhar nos olhos dela.

— Você é linda tocando — Luna disse.

Clara engasgou no meio da resposta. Não disse nada. Nem precisou. Seu rosto falava.

Luna apenas sorriu.

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