capítulo 4- Coisas Que Queimam

Quarto. Kim acordou com a cabeça ainda cheia das imagens da noite anterior: a água fria da piscina, o olhar de Abel, as palavras de Noah, o calor no peito.

Se sentou na cama, puxando o cobertor até o queixo. Lá fora, sua mãe já estava acordada, andando pela casa com passos apressados e batendo portas.

Kim suspirou, levantando devagar. O corpo doía, mas era uma dor boa de quem havia se divertido de verdade pela primeira vez em muito tempo.

Na cozinha, encontrou sua mãe com uma caneca de café na mão e um cigarro já aceso.

- Bom dia - disse Kim, tentando manter o tom neutro.

- Chegou tarde ontem.

- Você deixou eu ir...

- Deixei, não quer dizer que aprovei. - A mulher deu um gole amargo no café. - Acha mesmo que pode sair por aí se enfiando em festinhas com garoto?

- Mãe, era só uma festa com meus amigos.

- Com aquele Abel, né?

Kim cerrou os dentes.

- Sim. Com ele. E com Luana. E Gustav. E Noah.

- Hum. Noah... já começou a girar pelos meninos? - disse a mãe com desdém.

Kim parou, a voz presa na garganta.

- É só amizade. Não que você se importe, de qualquer forma.

A mãe se virou devagar, os olhos semicerrados.

- Tá se achando agora, é isso? Porque uns garotos te olharam? Porque um te defendeu? - Ela deu um passo à frente, e Kim recuou. - Deixa eu te lembrar de uma coisa, mocinha. Você é só uma garota quebrada com a sorte de estar aqui por minha causa.

- Você só pensa em si mesma! - explodiu Kim. - Nunca ligou pra mim, nunca perguntou como eu me sinto! E agora quer controlar o pouco de felicidade que eu encontro?

O tapa veio rápido. Mais um.

Kim fechou os olhos e respirou fundo, já acostumada demais com a dor.

- Você vai ver - disse a mãe, entre dentes. - Um dia esse Abel vai te abandonar igual todo mundo.

Kim subiu correndo pro quarto e bateu a porta com força. Encostou as costas contra ela e deslizou até o chão, as lágrimas caindo sem que pudesse conter.

Mais tarde, Abel bateu em sua janela.

Kim abriu, os olhos inchados.

- O que houve? - ele perguntou, preocupado.

- Nada. Só um dia difícil.

- Você quer sair? Sei lá, andar um pouco. Te distrai.

Kim assentiu. Vestiu um casaco, pegou o diário e desceu pela janela mesmo.

Eles caminharam até o parque vazio, em silêncio por um tempo.

- Kim... - disse Abel, quando já estavam sentados num banco, sob uma árvore. - Você tá mesmo bem?

Ela hesitou. Depois tirou o diário da mochila e passou pra ele, aberto numa das páginas.

"Às vezes, sinto que nasci no lugar errado. Que não tem ninguém que fique. Que tudo que toca em mim... quebra."

Abel leu em silêncio.

- Você não tá quebrada, Kim - disse ele, com a voz firme. - Você é forte. Forte de um jeito que nem percebe. Tá aqui, de pé, mesmo com tudo que teve que aguentar.

Kim olhou pra ele com os olhos marejados.

- Por que você se importa?

- Porque eu te vejo. De verdade.

Ela sentiu o coração acelerar. Ficaram assim, se olhando por segundos que pareceram longos demais. Abel se aproximou um pouco, como se fosse tocá-la... mas parou.

Kim desviou o olhar, tímida.

- Não tô pronta pra... isso.

- Tudo bem. A gente vai no seu tempo.

Na escola, os dias seguintes se tornaram um pouco mais leves. Kim estava mais próxima de Luana e Gustav, e até Noah parecia mais simpático... simpático demais, talvez.

Na aula de artes, enquanto pintavam uma tela em grupo, Noah se aproximou por trás de Kim, sussurrando no ouvido dela:

- Eu gostei daquele seu biquíni... vermelho combina com você.

Kim congelou por um instante, desconfortável. Abel viu de longe e franziu a testa.

- Noah - chamou Abel, num tom direto.

- Só elogiando a colega, mano - disse ele, sorrindo cínico.

- Respeita ela. Só isso.

Noah riu, levantando as mãos.

- Tá bom, protetor.

Luana, ao lado, murmurou:

- Esse Noah ainda vai causar.

Naquela tarde, Kim voltou pra casa com o coração apertado.

Estava sentada na cama, o diário entre as mãos, quando ouviu a notificação no celular.