Quebrando Regras
5 anos antes...
A estrada parecia silenciosa demais.
Kim Naerim, agora com dezesseis anos, mantinha o olhar fixo pela janela do carro. As árvores passavam como borrões, e as nuvens cinzentas pareciam combinar perfeitamente com o clima dentro do veículo pesado, abafado, como se qualquer palavra pudesse fazer tudo explodir.
Sua mãe, que dirigia com expressão fechada, acendia um cigarro pela metade com os dedos trêmulos. O cheiro forte se misturava ao perfume barato que ela usava, invadindo o carro todo. Kim odiava aquilo. O cheiro, o silêncio, o jeito da mãe sempre distante... como se estivessem presas uma à outra por obrigação.
- A gente já tá quase chegando - murmurou a mãe, a voz rouca pelo cigarro.
Kim apenas assentiu, sem desviar os olhos da janela.
Elas haviam deixado o Brasil naquela semana. A mãe de Kim, brasileira, tinha conseguido um emprego temporário no Canadá como enfermeira particular de um idoso rico. Era uma chance de recomeçar, dizia ela. Mas Kim sabia que não era bem assim. Sua mãe tinha problemas sérios com bebida, e só aceitara o trabalho depois de quase serem despejadas por não pagar o aluguel por três meses.
E o pai de Kim... bom, ele já não fazia parte da equação. Morreu quando Kim tinha nove anos. Desde então, era só ela, a mãe, e uma solidão pesada demais para sua idade.
Quando o carro finalmente parou em frente à nova casa, Kim desceu sem dizer uma palavra. O céu estava acinzentado, e o vento frio arrepiava sua pele. A casa era modesta, dois andares, com janelas grandes e uma cerca de madeira branca ao redor. Nada demais. Mas era melhor do que morar num apartamento mofado no centro de São Paulo.
Enquanto a mãe abria o porta-malas, Kim ouviu barulhos vindos do lado esquerdo da casa. Olhou por cima do ombro e viu um grupo de meninos jogando futebol em um quintal gramado. Eles riam alto, chutavam a bola entre duas árvores, improvisando um gol. Um deles, moreno, cabelos cacheados meio soltos e uma camisa preta colada ao corpo pelo suor, parou por um segundo e olhou diretamente para ela.
Os olhos dele eram escuros, intensos. Ele ergueu o queixo como se reconhecesse algo nela - talvez a solidão. Kim desviou o olhar rapidamente.
- Kim, ajuda aqui com essas caixas! - gritou a mãe, já visivelmente irritada.
Elas passaram o resto da tarde desempacotando as coisas. A casa estava gelada por dentro, cheirando a madeira antiga e limpeza superficial. Kim subiu com suas caixas para o quarto do segundo andar. Era pequeno, mas tinha uma janela grande com vista direta para a casa ao lado... e, coincidência ou não, para o mesmo quarto onde aquele garoto de antes entrou mais tarde, jogando a mochila no chão.
Horas depois, com a casa já mais ou menos arrumada, Kim saiu para respirar. O ar estava gelado, mas ela não se importou. Sentou-se no degrau da varanda da frente, abraçando os próprios joelhos. O céu começava a escurecer, pintando-se de roxo e azul escuro. Ela pensava em tudo o que havia deixado para trás - poucos amigos, alguns professores que se importavam, as ruas barulhentas do bairro... nada de muito valor, mas ainda assim, tudo que ela conhecia.
- Oi - disse uma voz masculina, fazendo-a levantar os olhos devagar.
Era o mesmo garoto de antes. Estava de moletom agora, com os cabelos ainda meio bagunçados do jogo.
- Você é nova aqui, né? - perguntou, enfiando as mãos no bolso da calça.
- Sou - respondeu Kim, num tom baixo, mas firme.
- Eu moro ali - disse ele, apontando para a casa ao lado. - Me chamo Abel. Abel Tesfaye.
- Kim... Kim Naerim - ela disse, hesitante.
- Nome bonito. Você é daqui?
- Do Brasil - ela respondeu, quase como se fosse uma explicação para tudo.
- Sério? Legal. Aposto que lá é bem mais quente que aqui.
Kim deu um pequeno sorriso. Foi a primeira vez que alguém a fez sorrir em dias.
- É... bem mais.
- Eu vi você mais cedo, quando chegou. Parece meio... sei lá, cansada do mundo.
- Talvez eu esteja mesmo.
Abel deu um risinho. Sentou-se no degrau ao lado dela, respeitando o espaço, sem forçar nada.
- Se precisar de ajuda pra conhecer o bairro ou alguém pra conversar... pode me procurar, tá?
Kim olhou para ele, e pela primeira vez sentiu que talvez... só talvez... não estivesse tão sozinha.
- Obrigada.
Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, observando o vento balançar as folhas secas pelo chão.
Mas aquele pequeno momento de paz não durou.
- KIM! - gritou a mãe dela da janela. - Vem aqui AGORA!
Kim suspirou, sem olhar para Abel.
- Boa sorte - disse ele, com um sorriso triste.
Kim entrou, já sentindo o gosto amargo na boca.
A casa estava escura por dentro, a televisão ligada em volume alto, e sua mãe sentada no sofá com uma garrafa de vinho aberta.
- Vai ficar se jogando pra cima de moleque agora? Mal chegou! - disse a mãe, levantando com os olhos vermelhos e a voz arrastada.
- Eu só tava conversando com um vizinho! - retrucou Kim, a raiva subindo.
- Tá me desafiando? - a mulher se aproximou, cambaleando. - Fala mais uma vez assim comigo!
- Talvez se você parasse de beber...
Foi rápido. O tapa estalou no rosto de Kim com força. Ela cambaleou para trás, segurando o rosto. Lágrimas arderam nos olhos antes mesmo de ela perceber.
Sem dizer nada, subiu correndo para o quarto, fechando a porta com força. Correu até a janela para fechá-la e congelou.
Abel estava do outro lado, na janela dele. Os olhos arregalados, a expressão de choque clara.
Kim fechou as cortinas com um puxão e se encostou na parede, deslizando até o chão. As lágrimas finalmente vieram.
Ali, no escuro do quarto novo, com a alma marcada por mais um golpe e a vergonha de ser vista tão vulnerável... ela se encolheu.
Mas, do outro lado da parede, alguém havia visto. E mesmo sem palavras, algo dentro dela sabia ,agora alguém sabia que ela precisava de ajuda.
E talvez... ele não fosse embora como todos os outros.
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Atualizado até capítulo 42
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