Ouro E Cinzas
Capítulo 1
Eubeia, Grécia – Verão de 1863
A alvorada mal tocava o horizonte quando Thalía Myriná já atravessava o pequeno riacho com o cesto nas costas. A água gelada envolvia seus tornozelos finos e acordava cada célula do seu corpo, endurecido por anos de luta e silêncio. Seu vestido simples, já manchado pelo barro e tempo, grudava-se à pele com a umidade da madrugada. Mas ela não reclamava. Aquilo era apenas mais um dia como tantos outros — duros, repetidos, intermináveis.
A aldeia de Kymi ainda dormia em suas sombras. As casas de pedra empilhada e telhados frágeis soltavam um rangido leve quando o vento batia. Cães magros perambulavam entre as vielas em busca de restos. Um galo, lá ao longe, anunciava que o mundo dos pobres estava acordando — como sempre antes do nascer do sol.
Thalía caminhava em silêncio. Na cabeça, um lenço preso firme para conter os fios rebeldes que sempre escapavam. Nos olhos, uma firmeza que poucas mulheres daquela vila ousavam carregar. Desde pequena, ouvira as histórias que sua avó contava: de curas feitas com folhas, de feridas tratadas com palavras e de mulheres que sobreviveram não por serem fracas, mas por saberem fingir que eram.
Ela aprendera. Aprendera a cuidar, a calar, a resistir.
Mas também aprendera a sonhar.
Enquanto colhia manjericão e lavanda nas encostas da colina, sentia a alma conversar com o céu. “Não nasci pra morrer aqui”, pensava. E depois se censurava, porque desejar liberdade era perigoso. Ainda mais para alguém como ela, uma camponesa sem nome entre nobres, sem dote, sem proteção.
A avó, velhinha e encurvada, dizia sempre:
— Menina, o mundo não tem lugar para mulher com fogo nos olhos. Ele vai tentar apagar isso de ti.
Thalía apenas sorria. Porque o fogo dela era teimoso.
Era o que a mantinha viva.
Ao retornar para a aldeia com o cesto cheio de folhas frescas e flores secas, passou por homens já acordados, alguns de olhar lento, outros pesados de intenção. Nenhum a assustava mais.
Ela havia aprendido a andar com a cabeça erguida, mesmo quando o chão parecia ruir sob seus pés.
Em frente à pequena casa de pedra onde vivia com a avó, o forno à lenha já soltava fumaça. O cheiro de pão amanhecendo misturava-se ao aroma das ervas e dava uma estranha sensação de lar — ainda que pobre, ainda que incompleto.
Lá dentro, sua avó mexia um tacho com um pano amarrado ao redor da cabeça.
— Trouxe a arruda, Thalía?
— Trouxe, e lavanda também. A colina estava cheia hoje.
— Isso é sinal de mudança. Quando a lavanda floresce sem aviso, é porque o tempo vai virar — disse a velha, com os olhos semicerrados, como se enxergasse algo além das paredes.
Thalía não respondeu. Mas lá no fundo, ela também sentia.
Havia algo no ar. Um peso. Uma brisa diferente.
Como se o mundo estivesse segurando o fôlego antes de algo acontecer.
E realmente estava.
Enquanto ela organizava os feixes de ervas e pendurava-os nas vigas para secar, lá do outro lado das colinas, um cavalo negro era preparado por mãos cuidadosas em uma propriedade rica, onde o nome Drakos ecoava em colunas de mármore.
Mas ela ainda não sabia disso.
Ainda era cedo demais.
Naquela noite, quando se deitou sobre o colchão de palha, o vento passou mais forte pelas frestas da janela. Levou o cheiro da lavanda. Levou, também, um pensamento:
“Será que existe um mundo onde posso ser quem sou… sem medo?”
Ela fechou os olhos, tentando afastar a pergunta.
Mas o destino — teimoso e curioso — já tinha a resposta.
E estava a caminho.
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Atualizado até capítulo 42
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