4. Biblioteca.

Vickie se levantou da cama com um suspiro dramático, jogando o celular de lado como se o mundo tivesse acabado.

— Gata, preciso correr. Aula de História com o senhor Morto-Vivo. Se eu me atrasar, adeus dignidade.

Prendeu o cabelo de qualquer jeito, fazendo um coque torto no alto da cabeça enquanto revirava os olhos.

— Que tipo de punição é essa? — perguntei, franzindo a testa.

Ela parou na porta, girou nos calcanhares e me lançou um sorriso afiado.

— Aqui? Se você chega atrasada, ganha uma semana limpando o colégio inteiro. Banheiro incluído, claro. E se der sorte, o encanamento ainda tá entupido.

— Tá brincando... — falei, horrorizada.

— Queria. Aí vem a parte boa: detenção. Leitura obrigatória do “Código de Conduta Ravenhall”, um livro com mais páginas que a Bíblia, e bem mais deprimente. Tem até prova no final. Decore ou sofra.

— E se alguém desobedecer mais de uma vez?

O tom dela mudou. O sorriso ficou mais tenso.

— Aí, querida, o bicho pega. Te trancam numa sala isolada, tiram comida por dias. Uma vez, um garoto foi pego invadindo o dormitório das meninas. Sumiu por três dias. Quando voltou… ele não era mais o mesmo.

Engoli seco.

— E teve um boato, né — continuou, baixando a voz.

— Que um aluno foi punido várias vezes seguidas. Dizem que ficou preso tanto tempo que quando abriram a sala… ele estava morto. Oficialmente, foi um ataque de pânico. Mas ninguém acredita nisso.

Fiquei em silêncio, sentindo o frio subir pelas costas.

Ela deu um sorrisinho torto e pegou a mochila com naturalidade.

— Mas relaxa, novata. Só não seja burra o suficiente pra testar os limites. E me deseja sorte.

— Boa sorte — respondi, ainda meio em choque.

— Beijos — ela disse, piscando. — Se eu não voltar, fui devorada por um fantasma do porão… ou por um discurso do professor de História, o que é bem pior.

E saiu, batendo a porta com leveza.

Fiquei ali, sozinha no quarto 207, sentindo o silêncio pesar sobre mim como se o próprio internato respirasse em meu pescoço.

E, pela primeira vez… me perguntei se sair viva dali era mesmo uma opção garantida.

Decidi que era hora de desfazer as malas. O silêncio agora soava quase confortável, como se o quarto, tivesse aceitado minha presença.

Abri a mala devagar, tirando item por item. Um porta-retrato com a foto da minha família, todos sorrindo, congelados numa felicidade que hoje parecia ficção.

Coloquei-o na mesinha ao lado da cama, como uma âncora em um mar desconhecido… mesmo sem saber se queria continuar presa àquela versão da minha vida.

Organizei as roupas no armário, o uniforme, calças jeans, camisetas, meus livros. Quando terminei, olhei o relógio.

Restavam trinta minutos. O único período em que era permitido circular pelo internato antes que os corredores voltassem a ser território proibido.

Respirei fundo, fechei a mala e saí.

O corredor estava deserto, mas não morto. O som dos meus passos ecoava pelas paredes de pedra, como se Ravenhall escutasse tudo.

Os vitrais coloridos tingiam o chão com luzes distorcidas. Quadros antigos, com rostos austeros de ex-diretores. Os armários, alinhados com precisão, pareciam soldados em prontidão.

Subi uma escadaria antiga, guiada apenas pela curiosidade, até encontrar uma porta semiaberta com uma placa dourada:

Biblioteca.

Empurrei devagar.

O cheiro de papel antigo, madeira encerada e um leve perfume de história esquecida me envolveu. As estantes iam do chão ao teto, perfeitas, vivas. Um refúgio escondido entre as paredes severas.

Fui direto à seção de romances.

Deslizei os dedos pelas lombadas como quem toca segredos. Peguei um livro de capa envelhecida e o folheei, quase com reverência. Foi então que senti.

Um olhar.

Por entre os vãos da estante, vi dois olhos cravados em mim.

Azuis. Intensos. Profundos. Sombras líquidas, paradas, me examinando.

Arregalei os meus. O rosto por trás daqueles olhos estava quase oculto, apenas o suficiente para me deixar com um arrepio no pescoço.

Tentei disfarçar. Guardei o livro, continuei tocando outros, forçando concentração. Mas sentia aquele olhar me seguir, como se pudesse arrancar meus pensamentos pela pele.

Peguei três volumes e segui até a mesa da bibliotecária, uma mulher de meia-idade, magra, com óculos escorregando no nariz e uma expressão que já não confiava em ninguém há muito tempo.

Assinei meu nome na folha de empréstimos.

Foi então que ouvi passos atrás de mim.

Virei devagar.

Ele estava ali.

O dono daqueles olhos.

Cabelos loiros desgrenhados como se o vento tivesse acabado de brincar com eles. Alto, postura despreocupada. O uniforme desleixado como se fosse uma afronta deliberada às regras.

— Liam Carter, o que está fazendo aqui? — a bibliotecária se levantou com os braços cruzados, irritada. — Não era pra estar na aula? Esqueceu das regras?

Ele caminhou até o balcão com a calma insolente de quem está sempre um passo acima das consequências. Não tirava os olhos de mim.

— A professora pediu esse livro — disse com a voz arrastada, quase preguiçosa.

A bibliotecária franziu os lábios, mas cedeu.

— Pegue e vá. Se a Helen te pega fora do horário, nem eu te salvo dessa vez.

Ele sorriu. Um sorriso torto. O tipo de sorriso que sabia ser perigoso… e gostava disso.

Pegou o livro, lançou um último olhar em minha direção, firme, direto, como uma promessa velada, e saiu. Os olhos ainda em mim até dobrar o corredor.

Um frio percorreu minha espinha.

Abaixei a cabeça, tentando ignorar o que aquela presença deixava atrás de si.

Saí da biblioteca com os livros apertados contra o peito. O som dos meus passos soava mais alto agora. Tudo parecia mais… atento.

Então, virei um corredor.

E esbarrei.

Os livros voaram das minhas mãos e caíram no chão, pela segunda vez no dia.

— Você não olha por onde anda? — resmungou uma voz grave.

Levantei o rosto. Claro.

Era ele.

Liam.

Liam Carter.

— Eu… eu não te vi — murmurei, me agachando para recolher os livros.

Ele soltou uma risada curta e debochada, arqueando uma sobrancelha.

— Mentirosa.

— Mentirosa? Você que esbarrou em mim!

— Olha, novata, não tenho tempo pra drama. Já me basta esse colégio podre de regras — disse com desprezo, virando-se para ir embora.

Mas, antes de sumir no corredor, ele olhou por cima do ombro e lançou, com um meio sorriso:

— Bem-vinda à selva, nerdzinha.

E desapareceu.

Fiquei ali, parada, os livros de novo nos braços, o coração batendo mais rápido que o necessário. Ravenhall não era feito só de lendas e regras.

Era feito de olhares perigosos.

E Liam?

Liam era tudo isso junto, e mais um pouco.

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