A madrugada trouxe um vento frio que fazia as janelas da casa rangerem baixinho. Valentina acordou antes que o dia clareasse, ainda envolta por uma sensação estranha que não sabia nomear. Ela sentou-se na beirada da cama, escutando o som distante da chuva que começava a cair lá fora, lenta e constante, como um murmúrio que encobria o mundo num manto cinzento.
Depois que descobrira um pouco mais sobre o passado de Antônio, Valentina sentia que os passos que dava por entre os cômodos da casa eram diferentes. Cada porta antiga e cada retrato amarelado pareciam agora ter um peso que antes não tinham. Ela sabia que a dor que ele carregava o mantinha fechado, quase como uma ferida que nunca parava de sangrar.
Sem sono, decidiu descer para a cozinha e preparar um pouco de café para começar o dia. Marta já havia deixado a lenha acesa no fogão, e o calor confortável espalhou-se pelo cômodo assim que Valentina entrou. Ela sentiu o cheiro forte dos grãos moídos e o ruído suave da água que começava a ferver.
Enquanto esperava o café coar, ouviu passos pesados do lado de fora. Por um momento, pensou que poderia ser Antônio, mas a figura que apareceu na porta foi Daniel, com o cabelo molhado e um meio-sorriso.
— Você acordou cedo — disse ele, sacudindo os ombros para espantar o frio. — Achei que todo mundo fosse dormir até mais tarde com essa chuva.
Valentina respondeu com um pequeno sorriso, servindo uma caneca para ele também.
— Tem dias que o sono simplesmente vai embora — respondeu, entregando a caneca a Daniel.
Ele agradeceu com um aceno e tomou um gole, encostando-se à bancada. Por um momento, os dois ficaram em silêncio, ouvindo apenas o barulho da chuva que engrossava contra o telhado.
— Você tem falado pouco com meu irmão — disse Daniel, sem muito rodeio. — Está com medo dele?
Valentina soltou o ar devagar, sem saber como colocar em palavras a sensação que a tomava sempre que os olhos escuros de Antônio cruzavam os dela.
— Não é medo — respondeu baixinho. — É respeito. E uma sensação de que ele carrega um fardo que eu não entendo.
Daniel assentiu, desviando o olhar para a janela embaçada.
— Ele nunca foi assim antes que perdêssemos a Lúcia — murmurou, quase para si mesmo.
O nome caiu entre eles como uma folha seca, pesada e cheia de significado.
— Lúcia? — Valentina repetiu, num sussurro hesitante.
Daniel fez uma pausa longa, como se lutasse contra a própria lembrança.
— A mulher dele. Ela morreu num acidente há alguns anos. Antônio nunca mais foi o mesmo. Ela era a única que conseguia arrancar um sorriso dele. Depois que ela se foi, ele se fechou pra tudo.
Valentina sentiu um aperto no peito. Por trás da postura dura e do olhar impenetrável, havia uma ferida antiga que nunca parava de doer.
— Sinto muito — disse, incapaz de encontrar outras palavras.
— Todos sentimos — respondeu Daniel num tom resignado. — Esta fazenda foi o que restou a ele. Então ele trabalha sem parar, como se isso pudesse calar a dor.
A conversa ficou suspensa no ar, embalada pelo som da chuva cada vez mais intensa.
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Ao longo da manhã, a fazenda mergulhou num ritmo lento. O clima frio e molhado forçou todos a se recolherem mais cedo. Valentina ajudou Marta a arrumar a despensa e a organizar mantimentos, e, entre um afazer e outro, sua mente voltava sempre à imagem do fazendeiro com os ombros curvados sob a chuva.
Já no fim da tarde, a tempestade amainou, deixando o céu num tom azul-acinzentado e a terra exalando aquele cheiro fresco e inconfundível de campo molhado. Valentina saiu até o alpendre e sentou-se num banco de madeira, contemplando a planície que se estendia além da casa.
Foi então que viu Antônio surgir no meio do pasto, sozinho, sem capa, como se quisesse que cada gota de chuva tocasse a própria pele. Ela ficou parada, observando-o em silêncio. O vento balançava os galhos das árvores, e por um momento ele pareceu tão pequeno em meio à vastidão da terra que Valentina sentiu uma compaixão genuína.
Sem pensar muito, desceu os degraus e seguiu em direção a ele, sentindo o solo macio ceder sob seus pés.
— Antônio! — chamou, sem muita certeza de que ele ouviria.
Ele se virou lentamente. Havia um cansaço profundo no rosto molhado, mas também uma expressão distante, quase apaziguada.
— Você vai acabar doente assim — disse Valentina quando o alcançou, cruzando os braços para espantar o frio.
Ele a olhou, surpreso por um instante, como se nunca esperasse que alguém viesse atrás dele num momento como aquele.
— Às vezes preciso sentir a chuva — respondeu ele com a voz rouca. — Ela lembra que estou vivo.
A frase pairou entre eles, cheia de sentimentos que não precisavam ser explicados. Valentina sentiu o impulso de dizer alguma coisa que o confortasse, mas as palavras pareciam frágeis demais para a dor que ele carregava.
Ainda assim, arriscou:
— Você não precisa carregar tudo isso sozinho.
Antônio ficou em silêncio por um longo instante, como se cada palavra que Valentina dissera pudesse atravessar as barreiras que ele próprio erguera. Por fim, soltou um suspiro longo e passou a mão pelo cabelo molhado.
— Você é teimosa — disse, num tom que soava quase como um agradecimento.
Valentina sorriu levemente, sentindo que, entre a chuva e o vento frio, algo invisível começava a mudar entre eles.
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Ao voltarem para casa, o céu escurecia rápido. Cada um seguiu para seus afazeres, mas Valentina sabia que a conversa silenciosa que partilharam em meio à tempestade havia aberto uma brecha, por menor que fosse, no muro que Antônio construíra em volta do próprio coração.
Enquanto se preparava para dormir, ouviu o vento soprando entre as árvores e deixou-se embalar por um estranho sentimento de esperança. Ela sabia que o caminho para alcançar a alma ferida daquele homem não seria simples. Mas também sabia que agora entendia um pouco melhor o peso que ele carregava — e que, quem sabe, poderia ajudá-lo a transformar essa dor em algo novo.
Do outro lado da casa, Antônio observava a escuridão do quarto, a expressão pensativa e o coração silenciosamente agitado. Pela primeira vez em muito tempo, o vento e a chuva pareciam menos tristes, como se a própria fazenda murmurasse que ele não precisava estar sozinho.
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Atualizado até capítulo 70
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