A noite caiu como um manto escuro sobre a Fazenda Estrela Velha, abafando os ruídos do dia e espalhando um frescor suave que trazia alívio ao calor intenso da tarde. Valentina trancou a porta do quarto, sentindo o corpo pesado e a mente cheia de impressões. Ela nunca imaginara que um lugar tão simples pudesse carregar uma energia tão intensa.
Na cozinha, a luz tênue da lamparina desenhava sombras inquietas nos cantos, e o perfume de café recém-coado misturava-se ao cheiro da madeira antiga. Marta mexia um panelão de sopa com a destreza de quem sabia cada detalhe da casa.
— Vem comer alguma coisa antes que esfrie — disse Marta quando viu Valentina espiar da porta. — Trabalhou bastante hoje.
— Obrigada — respondeu Valentina, sentando-se à mesa e sentindo o calor do vapor subir. — A fazenda é muito bonita. Tem algo nela que prende a gente aqui.
Marta soltou um riso abafado.
— Bonita, sim. Mas cheia de histórias que o vento sussurra quando a noite cai. — Ela fez uma pausa, como se pensasse melhor no que dizia, e depois mudou o tom. — Você vai se acostumar. No começo tudo parece estranho, mas logo vira casa.
Valentina assentiu, saboreando a sopa. Por um momento, o calor simples da comida e o som distante das cigarras a tranquilizaram. Mas a presença constante de Antônio ainda a intrigava. Por que ele mal falava? Por que os olhos dele pareciam sempre distantes, como presos a algo que não podia ser dito em voz alta?
Depois que terminou a refeição, decidiu que o melhor era descansar. Caminhou até o quarto sentindo o piso frio sob os pés, e quando passou pelo corredor que levava à ala leste, reparou que uma porta permanecia entreaberta — o que deveria ser o escritório do patrão.
A tentação foi mais forte que a prudência. Com passos leves, Valentina se aproximou e espiou para dentro. A luz da lua que entrava por uma janela alta iluminava o cômodo o suficiente para que ela visse estantes abarrotadas de livros empoeirados, uma escrivaninha cheia de papéis e um velho porta-retratos virado para baixo.
Sentindo um misto de curiosidade e culpa, entrou devagar. Tocou a madeira lisa da mesa e virou o porta-retratos. A imagem a fez prender a respiração: uma jovem sorridente, segurando um ramalhete de flores silvestres, os olhos cheios de esperança. Por um segundo, Valentina teve a nítida impressão de que já vira aquele rosto antes, mas não sabia dizer quando nem onde.
— Não devia estar aqui.
A voz grave soou tão perto que Valentina quase deixou o retrato cair. Ela virou-se num sobressalto e viu Antônio parado à porta, o semblante fechado.
— Eu… Desculpe. Não quis invadir — disse, a voz trêmula.
Antônio apenas entrou e pegou o porta-retratos com calma, devolvendo-o ao lugar.
— Às vezes, o melhor que fazemos é respeitar o que ficou para trás.
As palavras dele foram tão pesadas quanto o ar entre eles. Por um momento, os olhos escuros dele a prenderam num silêncio cheio de significados. Então ele apenas fez um aceno breve, como quem a dispensava, e saiu sem dizer mais nada.
No quarto, Valentina fechou a porta com o coração disparado. Havia algo em Antônio que ia além da simples rispidez. Era como uma dor antiga, que ele tentava disfarçar atrás da postura autoritária. E Valentina, que sempre fora boa em sentir o que os outros tentavam esconder, sabia que ali havia uma história.
Os dias seguintes seguiram num ritmo cadenciado entre os afazeres da casa e as longas conversas com Marta e Daniel. A cada novo detalhe que descobria — um pomar escondido atrás da casa, um riacho que corria entre pedras lisas no fim do campo — Valentina sentia-se mais ligada àquele lugar.
Em uma dessas manhãs, Daniel a chamou para cavalgar.
— Vem — ele disse, entregando-lhe as rédeas de uma égua mansa. — Quero te mostrar um ponto da fazenda que quase ninguém conhece.
Entre galopes e risadas abafadas, atravessaram o pasto até alcançar uma colina suave, de onde se via toda a propriedade estender-se até o horizonte. Valentina ficou em silêncio, sentindo o vento brincar com seus cabelos.
— Quando a gente era pequeno — começou Daniel —, meu irmão me trazia aqui quase todos os dias. Ele dizia que a fazenda era um tipo de promessa, que a gente nunca ia perdê-la, acontecesse o que fosse.
Valentina olhou para ele, percebendo o tom nostálgico em sua voz.
— E isso mudou?
Daniel respondeu num suspiro.
— Mudou quando perdemos a nossa mãe. Antônio nunca mais foi o mesmo. Ele carrega essa terra nos ombros como um fardo, não como um presente.
A conversa deixou Valentina pensativa. Ela começava a compreender que por trás da fachada dura e fria de Antônio havia um homem que já amara profundamente e que fora ferido por perdas que nunca superara.
Na volta para casa, com o pôr do sol tingindo o céu em tons avermelhados, Valentina sentiu que a fazenda começava a entrelaçar-se a sua própria história. Ela sabia que a convivência com todos ali, especialmente com Antônio, ainda guardava muitos desafios — mas também a promessa de um recomeço inesperado.
Ao adormecer naquela noite, o som distante do vento entre as árvores soava quase como uma canção, lembrando-a de que, às vezes, o destino nos conduz a lugares que jamais imaginamos — e que são exatamente onde devemos estar.
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Atualizado até capítulo 70
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