O Fazendeiro Cruel
A estrada de terra levantava uma poeira avermelhada sob os pneus do velho jipe que avançava devagar entre as cercas tortas e as pastagens escuras. Era fim de tarde, e o céu começava a tingir-se de um cinza profundo, anunciando a chegada da noite. Valentina segurava a alça da mala com força, tentando controlar a própria ansiedade. Ela nunca imaginara que, depois de tanto tempo na cidade, voltaria a pisar num lugar assim, tão distante e esquecido.
Ao longe, a casa principal da Fazenda Estrela Velha começava a surgir entre os galhos das mangueiras. Era uma construção antiga, com varanda comprida e portas largas que pareciam guardar muitos segredos. Valentina respirou fundo. Fora a única oportunidade que encontrara para mudar de vida, e a proposta de trabalho como cuidadora da casa e cozinheira, com um quarto simples e um pagamento generoso, era irrecusável.
Assim que desceu do carro, um homem alto e robusto saiu do galpão. Usava um chapéu surrado que encobria parcialmente o rosto e uma camisa de algodão grosso, grudada ao peito por causa do calor abafado. Ao seu lado, um jovem esguio segurava uma corda enrolada, observando Valentina com curiosidade.
— Você deve ser a moça que respondeu ao nosso anúncio — disse o homem com uma voz grave que mal escondia o cansaço. — Sou Antônio de Moura. E esse aqui é o meu irmão mais novo, Daniel.
— Muito prazer — respondeu Valentina, engolindo a sensação estranha que o olhar dele lhe provocava. — Sou Valentina Albuquerque.
Antônio apenas acenou e virou-se para o jovem.
— Daniel, ajude a moça com a mala. Depois mostre o quarto que arrumamos pra ela.
O rapaz assentiu prontamente e pegou a mala pesada, sorrindo de um jeito simpático.
— Vem por aqui, dona Valentina. A casa pode parecer meio antiga, mas tem o seu charme.
Enquanto cruzavam o quintal, Valentina notou outras figuras: uma mulher de meia-idade regava as flores num canteiro próximo — Marta, a cozinheira da fazenda, que a encarou de esguelha antes de acenar com a cabeça — e, junto a um bebedouro, um menino franzino, sujo de terra, brincava com um pedaço de madeira como se fosse um cavalo.
— Aquele é o Miguelzinho — explicou Daniel baixinho. — É o filho da Marta. Ela mora aqui há muitos anos e é quase da família.
Valentina assentiu, absorvendo cada detalhe. O lugar tinha uma beleza bruta e melancólica que, por algum motivo, a fascinava. Entraram na casa por uma porta lateral que dava para um corredor simples. Daniel a conduziu até um quarto pequeno, com uma única janela voltada para o pomar.
— Espero que esteja confortável. Amanhã começamos cedo — ele disse antes de se despedir.
Quando ficou sozinha, Valentina deixou a mala no chão e sentou-se na beirada da cama, sentindo o peso do dia sobre os ombros. Ouviu vozes abafadas no corredor e risadas que pareciam distantes. Ela sabia que, além de Antônio e Daniel, a casa escondia outras histórias e que o fazendeiro que a contratara — sério e distante — carregava muito mais do que os olhos podiam ver.
Ao anoitecer, uma fina garoa começou a cair, tamborilando no telhado. Valentina fechou a janela e pensou em tudo que deixara para trás para estar ali: a antiga casa no subúrbio, os problemas que nunca foram resolvidos e a esperança, tênue, de recomeçar num lugar novo. Ela não sabia dizer exatamente o que a esperava nos próximos dias, mas sentia que o destino a guiara até a Fazenda Estrela Velha por alguma razão maior.
Na escuridão que envolvia os campos e o casarão, o vento sussurrava entre as árvores, como um aviso silencioso de que mudanças estariam a caminho — e que cada um ali, a seu modo, tinha segredos prontos para vir à tona.
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O quarto que Valentina ocupava tinha apenas o essencial: uma cama simples, um armário de madeira escura e uma cadeira antiga num canto, junto a uma mesa com uma única gaveta. Ela se aproximou da janela e deixou o olhar vagar pelo pomar iluminado apenas pelo luar tímido entre as nuvens. Havia uma beleza melancólica ali, quase como se a própria casa respirasse suas memórias.
Ao longe, o barulho distante do gado e o farfalhar das folhas traziam uma sensação inesperada de paz. Ela nunca foi muito supersticiosa, mas sentiu que o ar daquela fazenda tinha um tom peculiar — denso, cheio de segredos que pairavam invisíveis entre as paredes.
Do corredor, vozes abafadas chamaram a sua atenção. Com cuidado, Valentina entreabriu a porta e pôde ouvir pedaços da conversa entre Antônio e Daniel, que pareciam discutir num tom baixo, quase irritado.
— Ela vai se assustar com o clima daqui, Antônio. Você viu o jeito que ela olhou em volta? — disse Daniel.
— Precisamos da ajuda dela. Marta não dá conta de tudo sozinha — respondeu Antônio num tom mais contido.
Houve uma pausa pesada antes que Daniel murmurasse algo incompreensível e os passos voltassem a ecoar pelo corredor até sumirem.
Fechando a porta devagar, Valentina soltou o ar que sequer percebera que havia prendido. Por que a vinda dela causava tanta preocupação? E que clima era esse a que Daniel se referia? Ela não sabia, mas o instinto dizia que ali os dias nunca eram exatamente iguais.
Amanheceu cedo, com a luz suave do sol infiltrando-se pelos vãos da janela. Valentina levantou-se num sobressalto, ansiosa para começar o trabalho. Encontrou a casa em silêncio, com apenas o som da chaleira borbulhando na cozinha. Marta já preparava o café da manhã e esboçou um sorriso cansado quando a viu.
— Bom dia, menina — disse a cozinheira, que tinha uma voz calorosa apesar do ar reservado. — Dormiu bem?
— Bom dia — respondeu Valentina, servindo-se de uma caneca simples e sentando-se junto à mesa rústica. — Dormi, sim. A casa é antiga, mas aconchegante.
Marta assentiu, enxugando as mãos num pano. — Você vai ver que aqui cada dia tem o seu ritmo. E vai ter trabalho, viu? Hoje tem que limpar os quartos da ala leste e ajudar com o almoço. Mais tarde o patrão vai te chamar para acertar os detalhes.
Assim que Marta saiu, Daniel apareceu na porta, já pronto para o dia.
— Vem comigo — ele disse num tom leve. — Antes que comece a faxina, te mostro o galpão e a horta. Você vai precisar conhecer o que tem aqui.
Enquanto caminhavam entre os canteiros e ferramentas espalhadas, Daniel falava da rotina da fazenda, dos pequenos problemas com o motor do poço e das vacas que estavam esperando filhotes. Valentina escutava com atenção, sentindo-se cada vez mais integrada ao lugar. Quando passavam pelos currais, a figura imponente de Antônio surgiu novamente no portão.
Ele a observava em silêncio, e Daniel cumprimentou o irmão com um gesto rápido antes de continuar o tour.
— Parece que ele nunca dorme — comentou Valentina baixinho, quase para si mesma.
Daniel soltou um riso curto.
— Antônio tem muitos motivos pra ficar acordado. Você vai entender com o tempo.
Ao ouvir isso, Valentina sentiu um frio estranho correr por sua espinha, mas preferiu não perguntar. Algumas verdades, sabia, eram reveladas apenas quando a hora certa chegava.
De volta à casa, passou o dia ocupada com os afazeres simples, que aos poucos acalmavam sua mente agitada. Ao entardecer, quando a luz dourada começava a tingir os campos, Valentina sentou-se por um momento nos degraus da varanda. Do outro lado da cerca, Antônio cuidava pessoalmente do último lote de animais antes da noite cair. Ele parou por um instante, tirou o chapéu para enxugar o suor da testa e, num raro momento, seus olhos cruzaram com os dela.
Foi um olhar rápido, quase involuntário, mas suficiente para Valentina captar uma sombra antiga ali — uma tristeza que ele jamais admitiria. Ela desviou o rosto, sentindo o calor subir às faces.
Aos poucos, o céu enegreceu e uma brisa fria começou a soprar pelos campos, anunciando que a noite se estendia sobre a Fazenda Estrela Velha. Valentina sabia que tinha muito a descobrir. E que, entre o peso da solidão que Antônio carregava e os segredos escondidos nos corredores daquela casa antiga, o que a esperava ali poderia mudar a sua própria história para sempre.
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Atualizado até capítulo 70
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