Tarde, Mas Na Hora Certa
O som da chuva batendo contra os vitrais da antiga biblioteca era constante, quase reconfortante, como se o mundo estivesse dizendo que não havia pressa ali. A Universidade de Saint Jules parecia suspensa no tempo nas noites assim, quando o céu se derramava e os corredores de pedra ecoavam mais do que de costume.
Luca estava encostado em uma das prateleiras mais escondidas do terceiro andar, onde os livros de literatura clássica e poesia francesa dormiam há décadas. Um exemplar de Rimbaud aberto na mão esquerda e a testa apoiada na madeira fria da estante. Era seu ritual: fugir para aquele canto invisível sempre que o mundo ficava barulhento demais.
Ele não esperava que alguém aparecesse ali. Ainda menos ele.
— “Você sempre foge pra cá ou hoje é só uma coincidência?”
A voz era grave, com um tom arrastado que deixava cada palavra parecer mais íntima do que deveria.
Luca virou devagar, como se temesse quebrar a ilusão, e ali estava o novato. Camisa preta meio molhada, mochila caída no ombro, cabelo escuro pingando nas têmporas. Ele parecia acabado de chegar da chuva, ou talvez de outro mundo.
— Eu… — Luca tentou falar, mas engoliu em seco — Você é o cara da aula de história comparada, né?
O outro sorriu, e naquele instante, algo mudou. Foi quase imperceptível, mas estava lá: como se o ar ficasse mais denso, como se tudo antes tivesse sido em preto e branco.
— Dante. — Ele estendeu a mão, ainda com gotas escorrendo pelos dedos. — E você é o único que lê poesia de madrugada, aparentemente.
Luca hesitou antes de apertar. Tocar alguém sempre foi um risco que ele raramente corria. Mas algo nele — talvez o jeito com que Dante o olhava como se o conhecesse de antes, de muito antes — o fez ceder.
— Luca. — disse, quase num sussurro.
Eles ficaram em silêncio por alguns segundos. Apenas o som da chuva e o farfalhar distante de páginas viradas.
— Você sempre vem aqui? — Dante perguntou, agora se aproximando devagar.
— É o único lugar onde eu escuto meus próprios pensamentos. — Luca respondeu, voltando a olhar para o livro.
— E o que eles dizem agora?
Luca fechou o livro. O título na capa, “Une saison en enfer”, parecia mais irônico do que nunca. Ele encarou Dante por um momento que pareceu eterno.
— Estão confusos. E estranhamente curiosos.
Dante riu, um riso curto, rouco, que parecia guardar segredos demais.
— Bom. Talvez eu goste de confundir.
E então veio o silêncio. Mas não um silêncio desconfortável. Era o tipo de silêncio que só acontece entre duas pessoas que ainda não se conhecem, mas que sabem — de algum modo inexplicável — que algo importante está prestes a acontecer.
Luca desviou o olhar, sentindo o coração bater forte demais para ser ignorado. Ele já tinha visto Dante nos corredores. Já tinha notado seu andar tranquilo, sua postura de quem parece saber exatamente quem é. Mas agora, perto assim, Luca sentia que era ele quem estava sendo lido. Página por página.
— Quer um café? — Dante perguntou, de repente.
Luca arqueou a sobrancelha.
— Agora? São quase meia-noite.
— É quando o café é mais necessário. E… — Dante fez uma pausa. — Quando os encontros mais improváveis viram os mais inesquecíveis.
Luca mordeu o canto do lábio. A parte racional queria voltar para o dormitório, fingir que nada daquilo estava acontecendo. Mas a parte que lia poesia em francês sob a luz amarelada de uma biblioteca esquecida, queria dizer sim.
E disse.
— Só se for forte.
— Eu faço o melhor da faculdade. Você vai ver.
Dante sorriu de novo, e Luca teve certeza que aquilo não era o começo de um simples café. Era o início de uma história — daquelas que mudam tudo.
E, pela primeira vez em muito tempo, ele quis saber onde aquilo ia dar.
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Atualizado até capítulo 50
Comments
kanaikocho
❤️👍💯 Ótimo trabalho, autor(a)! ❤️👍💯
2025-06-22
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