...Lua...
O silêncio ainda pairava entre nós.
Mas não era confortável.
Era denso.
Cheio de pensamentos não ditos.
E então ela quebrou.
Como sempre.
Direta.
Fria.
Quase cruel.
— “Por que você é assim comigo?”
Virei o rosto, confusa.
— “Assim como?”
Ela me encarou.
— “Arrogante. Irritada. Cheia de si. Você trata todos com desdém, mas comigo… parece pessoal.”
Senti o sangue ferver.
Porque ela estava certa.
E eu odiava isso.
— “Você quer mesmo saber, Katherine?” — rebati, o nome saindo mais afiado do que pretendia.
Ela apenas cruzou os braços, esperando.
— “Porque você… você me beijou!”
Silêncio.
Ela nem piscou.
— “Foi um acidente,” ela disse, calma.
— “Não importa! Você invadiu meu espaço! Me… confundiu!”
Eu me levantei num impulso.
As palavras saíam antes que eu pudesse pensar.
— “Você me tratou como se fosse um jogo, como se minha posição não importasse, como se… como se você tivesse o direito de brincar comigo!”
Ela continuava ali, sentada, olhando pra mim.
E então disse, num tom que me desarmou:
— “Você já tem alguém, não tem?”
A pergunta me atingiu como uma flecha.
Mas foi a maneira como ela falou… não com ciúme, nem provocação.
Mas com… decepção.
— “Sim,” eu disse. “Tenho um namorado. E ele… ele não me faz sentir como você me faz sentir. E isso me deixa ainda mais irritada.”
Pronto.
Estava dito.
Eu, Lua Valenhardt, herdeira da Coroa Dourada, havia confessado que Katherine D’Argent me afetava.
Mais do que eu queria admitir.
Mais do que eu conseguia suportar.
Ela ficou em silêncio por um momento, os olhos vermelhos suavizando por um instante.
— “Você não é a única irritada, princesa. Acredite.”
— “Então por que você me provoca tanto?”
Ela se levantou, ficando a apenas um passo de mim.
A altura dela… o cheiro dela… o olhar dela.
Tudo era caos.
— “Porque você é a única pessoa aqui que parece real. A única que não finge o tempo todo.”
— “Mas eu finjo o tempo todo,” sussurrei.
— “Sim. Mas mesmo fingindo, você ainda me olha como se quisesse me matar… ou me beijar de volta.”
Meu coração pulou.
E pela primeira vez… eu não soube o que responder.
Ela sorriu.
— “É isso que te irrita tanto, não é?”
Sim.
Sim.
Mas eu apenas fiquei ali.
Sem forças pra continuar discutindo.
Sem coragem pra admitir o que eu mesma não entendia.
Ela me olhava.
Com aquele jeito dela.
Firme, segura, à vontade na própria pele.
E era isso que mais me irritava.
Ela era livre.
E eu… não.
Ela podia rir alto, andar rápido, dizer o que pensa.
Ela podia errar. Cair. Sair pela porta sem que metade do reino julgasse cada passo.
Ela não era uma Valenhardt.
Ela era Katherine D’Argent.
E isso… bastava.
— “Você me atinge,” murmurei, a voz falhando de leve.
Ela franziu o cenho.
Um passo mais perto.
— “O quê?”
Engoli seco.
Respirei fundo.
— “Eu tenho ódio de você, Katherine. Porque você é tudo o que eu não posso ser.”
Ela não respondeu.
Não sorriu.
Não ironizou.
Só me ouviu.
— “Você fala o que quer. Anda como quer. E parece não carregar o peso de ninguém. Eu fui criada para ser perfeita. Para representar um trono, uma linhagem, um legado inteiro. E você… você só aparece do nada e toma espaço como se o mundo fosse seu.”
Minha voz ficou mais baixa. Mais amarga.
— “Você é livre. E eu te odeio por isso.”
Por um instante… ela me olhou como ninguém nunca olhou.
Não com pena.
Não com medo.
Mas com entendimento.
E foi isso que me destruiu.
Ela estendeu a mão, com calma.
Tocou meu pulso.
— “Você não me odeia, Lua.”
— “Claro que odeio.”
— “Não. Você me deseja. Porque eu sou a prova viva de que dá pra viver fora da gaiola. E isso assusta você.”
Meus olhos arderam.
Mas eu nunca choro.
Não mais.
Ela sussurrou, tão perto que quase doeu:
— “E sabe o que é pior?”
Silêncio.
— “Você quer fugir dessa prisão… mas não tem coragem de abrir a porta.”
Ela se afastou, leve.
Me deixou ali, com o peito doendo e o orgulho em frangalhos.
Maldita.
Linda.
Livre.
E eu?
Uma princesa com coroa de vidro…
…e correntes invisíveis nos pulsos.
Voltei pra casa como se nada tivesse acontecido.
Como se eu ainda fosse só a herdeira da Coroa Dourada.
Como se Katherine D’Argent nunca tivesse me tocado com os olhos… ou com os lábios.
O castelo estava igual.
As colunas douradas.
As servas sorridentes.
O cheiro de chá e protocolo.
Minha mãe, rainha Violette, sentada no trono como uma deusa viva, analisando cada detalhe meu com aquele olhar que tudo vê.
— “Você chegou atrasada hoje, Lua.”
— “Sim, mãe. Problemas no campus.”
Ela não perguntou mais.
Confiava em mim.
Ou, talvez, preferisse não saber.
---
Fiz tudo como sempre.
Treinei com os generais reais no final da tarde.
Estudei política mágica avançada.
Fiz aula de canto.
Li um capítulo do livro de códigos ancestrais.
À noite, encontrei Minne e Auri, minhas amigas mais próximas da corte, para um chá supervisionado.
— “Você viu aquela nova garota?” — Minne disse, mexendo o chá de rosas com graça exagerada.
— “A de cabelo branco?” — Auri riu. “Uma mistura de aberração e deusa, se quer saber.”
Fingi um sorriso.
— “Não percebi nada demais.”
Mentira.
Toda vez que fechava os olhos, era o rosto dela que surgia.
Aquela expressão impassível.
Aquela coragem sem esforço.
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Mais tarde, entrei no quarto e tranquei a porta.
Acionei o feitiço de comunicação privada.
A imagem dele surgiu no espelho encantado.
Leon, príncipe do Reino do Norte.
Bonito. Educado. Um bom partido.
— “Minha estrela,” ele disse. “Senti sua falta.”
— “Também senti,” menti de novo.
Conversamos por dez minutos.
Ele falou de política. De guerra. De comércio.
Eu respondi com a elegância de sempre.
Mas, por dentro…
Meu coração estava longe.
Estava naquele corredor molhado.
Naquela voz rouca dizendo que eu queria fugir e não tinha coragem.
Naquela menina livre.
Desliguei o feitiço.
Deitei na cama.
E pela primeira vez em anos, desejei não ser princesa.
Desejei…
ser outra pessoa.
Nos dias seguintes, decidi que Katherine não existia.
Ela passou a ser apenas… uma sombra nos corredores.
Um vulto branco de cabelos longos.
Um ruído que eu escolhia não ouvir.
Ela entrava na sala, sentava no lugar dela, e eu nem levantava os olhos.
Meus cadernos estavam mais organizados do que nunca.
Meus sorrisos mais treinados.
Minhas respostas mais afiadas.
E meu mundo, mais… vazio.
Minne e Auri notaram a mudança, claro.
— “Você anda tão centrada, Lua,” comentou Minne, orgulhosa.
— “Acho que você precisava mesmo de um pequeno desafio pra se lembrar de quem é,” completou Auri.
Eu só sorri.
Fingir sempre foi meu maior talento.
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Kath, por outro lado, parecia não ligar.
Ela ria com alguns alunos dos fundos.
Sumia no intervalo.
Ganhava pontos nas provas práticas com facilidade.
Tirava notas perfeitas em codificação mágica.
Mas não me olhava.
Não dizia meu nome.
Não tentava me provocar.
E isso…
Me irritava mais do que qualquer palavra dela teria feito.
No fundo, uma parte covarde de mim queria que ela invadisse de novo o meu espaço.
Que me puxasse de volta para aquele lugar onde eu sentia.
Mas ela respeitou o silêncio.
E esse silêncio foi ensurdecedor.
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Na terceira semana, eu a vi sair da aula de Estratégia Noturna com uma expressão fechada.
Ela estava com sangue na luva — provavelmente de um treino avançado.
Passou por mim.
Não disse nada.
Nem sequer me notou.
E eu odiei isso.
Porque se ela realmente tivesse sido um jogo, ela estaria tentando ganhar.
Mas o que mais me doía…
…era pensar que talvez ela realmente tivesse seguido em frente.
Como se eu fosse só…
Mais uma princesa.
E não o caos que ela mesma ajudou a acender.
O castelo estava mais iluminado do que o normal.
As tochas de cristal mágico flutuavam em fileiras perfeitas pelo teto.
As criadas correram para ajeitar meu vestido antes mesmo que eu entendesse o motivo.
— “A rainha deseja vê-la no salão imperial,” disse uma guarda.
Eu franzi o cenho.
— “Agora?”
— “Agora.”
---
Ao entrar no salão, entendi tudo.
Eles estavam lá.
A comitiva do Reino do Norte.
Meu namorado, Leon, com o uniforme oficial bordado a ouro.
A mãe dele — fria como gelo.
O pai — um guerreiro diplomata de poucas palavras.
E atrás deles… generais, conselheiros, estrategistas.
Meu pai, o rei Eron, estava sentado no trono ao lado de minha mãe, a rainha Violette — que mantinha o sorriso real que só usava quando queria dominar a sala sem levantar a voz.
— “Lua,” ela disse, com doçura ensaiada, “nosso futuro precisa da sua presença.”
Sorri.
Sempre sorrindo.
Me curvei diante dos convidados.
Leon se aproximou, beijando minha mão.
— “Estava com saudade.”
— “E eu com mil reuniões,” respondi, educada.
Ele riu.
Mas havia algo no olhar dele — uma tentativa de me decifrar.
---
A reunião começou.
Tratados de paz.
Alianças comerciais.
Acordos militares discretos contra o Reino das Sombras.
Enquanto todos falavam de fronteiras e recursos, eu pensava em outra coisa.
Em outra pessoa.
Era ridículo.
Estúpido.
Inaceitável.
Mas a imagem de Katherine voltava.
Os olhos vermelhos.
A forma como ela me chamava de "princesa" com ironia.
A liberdade com que ela caminhava, como se não devesse nada a ninguém.
Enquanto eu estava ali…
Trancada num jogo político onde até meus sentimentos eram peças.
Leon segurou minha mão discretamente sob a mesa.
— “Você está bem?”
Assenti.
— “Claro.”
Mais uma mentira.
---
Naquela noite, após horas de sorrisos e vinhos caros, fui para o meu quarto.
Troquei o vestido por algo leve.
Soltei o cabelo.
E fiquei ali, sozinha diante do espelho.
Eu tinha tudo.
Um reino.
Um trono a caminho.
Um príncipe ao meu lado.
Mas por dentro…
…eu só queria saber onde ela estava.
O céu ainda estava pálido quando as batidas na porta soaram.
Duas. Secas. Decididas.
Vesti rapidamente o manto de seda que ficava pendurado perto da cama.
Minha voz ainda estava baixa pela manhã:
— “Entre.”
Antes mesmo da porta se abrir por completo, Leon já estava falando.
— “Lua, eu não consegui dormir. Fiquei pensando em nós. Em como tudo parece… distante ultimamente.”
Ele entrou sem pedir permissão.
Estava com a camisa levemente aberta e o cabelo desarrumado de propósito.
Típico.
Suspirei, recuando dois passos.
— “É cedo, Leon. Podíamos falar disso depois do café real.”
— “Não, eu não quero falar depois,” ele disse, a voz mais baixa, tentando parecer íntimo. “Quero agora. Quero você agora.”
Franzi o cenho.
— “Como assim?”
Ele se aproximou.
— “Nós somos prometidos. Estamos juntos desde que éramos crianças. Você é linda, Lua. Inteligente. E está sempre tão… fria. Mas eu sei que por baixo dessa armadura, tem alguém que também sente.”
— “Leon, pare—”
Mas ele não parou.
Encostou uma mão na minha cintura.
A outra foi subindo pelo meu braço.
Seu rosto vinha se aproximando demais.
Meu corpo endureceu.
Por dentro, gritei.
Mas por fora, permaneci imóvel por um segundo a mais do que deveria.
E então falei, firme:
— “Tire a mão de mim. Agora.”
Ele congelou.
O que veio a seguir foi constrangedor demais.
— “Lua, eu só… nós vamos nos casar. Achei que podíamos… aproveitar o tempo juntos.”
— “Você achou errado.”
Recuou dois passos, levantando as mãos.
— “Me desculpe, eu—”
— “Leon, a única coisa que você realmente conhece sobre mim é o meu nome e o que esperam de mim. Não confunda aliança política com intimidade. Não de novo.”
Ele ficou ali, entre a porta e minha fúria.
Por fim, se curvou.
— “Perdão, princesa. Não foi minha intenção… ofender sua honra.”
— “Você não ofendeu minha honra. Só me lembrou de quem eu realmente sou.”
E com isso, ele saiu.
Deixando a porta entreaberta.
E o silêncio mais denso do que antes.
Eu me sentei na beira da cama.
Fria por fora.
Explodindo por dentro.
E pela primeira vez, desejei não só fugir daquele castelo…
…mas fugir de mim mesma.
Não consegui voltar a dormir.
O corpo parecia limpo, mas a alma estava suja.
Aquela sensação de ser tocada sem permissão… de novo.
De ser tratada como objeto real, como parte de uma aliança, não como uma pessoa.
Me vesti com calma.
Tecido preto. Justo. Sem decotes. Sem adornos.
Queria parecer inacessível. Intocável.
A herdeira de uma coroa.
Não uma boneca noiva.
Antes mesmo de terminar de prender o cabelo, ouvi a batida na porta.
— Toque. Toque.
— “Princesa Lua,” disse uma das criadas. “Sua majestade, o rei Eron, deseja vê-la na sala do trono.”
Respirei fundo.
— “Diga que estou a caminho.”
---
O corredor até o trono nunca pareceu tão longo.
Os vitrais brilhavam com a luz da manhã como se zombassem da minha insônia.
Os guardas abriram as portas com reverência.
E então…
Ali estava ela.
Katherine. D’Argent.
De pé, ao lado do trono de meu pai, como se aquele mármore tivesse sido feito pra ela.
Como se já pertencesse ali.
E é claro — é claro — que ela me viu primeiro.
E sorriu.
Aquele maldito sorriso.
A inclinação de canto de boca.
O brilho debochado nos olhos.
O jeito como ela me olhava como se soubesse de todos os meus segredos.
Como se pudesse ouvir o som acelerado do meu coração.
Minha expressão não mudou.
Não vacilei.
Mas por dentro, eu ardi.
— “Bom dia, princesa,” ela disse, com voz doce e afiada.
— “D’Argent,” respondi, seca.
Meu pai ergueu uma das mãos, sorrindo como se a cena fosse normal.
— “Lua, ainda bem que chegou. Katherine foi chamada para nos auxiliar em um projeto delicado. Uma missão que, infelizmente… envolve você também.”
Claro que sim.
O destino tem um senso de humor muito cruel.
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Atualizado até capítulo 70
Comments
Ken ZO
Que história incrível, não consegui parar de ler!
2025-06-20
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