... Lua...
Dizem que nascer na realeza é nascer com sorte.
Mentem.
Nascer na realeza é nascer com grilhões dourados — invisíveis, mas inquebráveis.
É ter cada passo ensaiado, cada gesto analisado, cada palavra medida.
Eu sou Lua Auren Valenhardt, filha do rei Eron III… e da rainha Violette.
Herdeira direta da Coroa Dourada.
A menina que nunca teve permissão para errar.
Mamãe ainda está viva.
Viva… e brilhante.
Rainha amada por todos, com um sorriso que pode silenciar guerras.
Mas mesmo ela, com toda sua doçura ensaiada e seus vestidos de seda encantada, nunca me deixou esquecer quem eu deveria ser.
— “Você é uma Valenhardt, Lua,” ela sempre dizia. “Brilhe tanto que ninguém possa questionar seu lugar.”
E eu brilhava.
Com notas perfeitas.
Com discursos bem construídos.
Com decisões racionais, frias e admiráveis.
Mas nunca com liberdade.
Minha mãe me ama.
Só que ama ainda mais… a imagem da filha perfeita.
Aos cinco, me ensinaram a andar com um livro na cabeça.
Aos sete, eu já treinava táticas de guerra com generais.
Aos nove, fui matriculada na Instituição Alta da Coroa.
E aos dezesseis… já me consideravam a mente mais afiada do reino.
Afiada.
Mas ainda assim… cega para o que estava por vir.
Porque naquela época, eu ainda achava que o mundo era previsível.
Controlável.
Calculável.
E então…
Ela chegou.
Acordo todos os dias às 5h em ponto.
Não porque gosto, mas porque já fui treinada para isso.
Treino físico às 5h30.
Café da manhã sob vigilância mágica às 6h15.
Chegada à escola: exatas 6h58.
Dois minutos antes da primeira aula.
Nunca um a mais.
Nunca um a menos.
Na Instituição Alta da Coroa, há três tipos de alunos:
Os filhos dos nobres — ricos, mimados, úteis apenas como moeda política.
Os prodígios — gênios treinados pelas famílias para servirem como conselheiros reais.
E eu.
A herdeira.
Eu não sou só uma aluna.
Sou o padrão.
Minha sala se chama Classe Prime.
Ela existe há mais de trezentos anos e só aceita os dez alunos mais promissores do reino.
Somos chamados de intocáveis.
Mas isso não significa liberdade.
Significa vigilância.
Todos os olhos estão sempre em mim.
Professores fingem naturalidade, mas pesam cada palavra quando estou presente.
Alunos sussurram, sorriem, curvam a cabeça.
E eu sorrio de volta, com uma gentileza que parece minha… mas não é.
Não há amizade.
Não há descanso.
Não há vulnerabilidade.
Só performance.
Só o peso de ser Lua Valenhardt, a futura rainha.
Hoje, como sempre, entrei na sala antes de todos.
Sentei na mesma cadeira — a última fileira, no canto onde posso observar tudo.
Coloquei meus materiais perfeitamente organizados sobre a mesa.
E abri meu livro antes do primeiro sinal tocar.
Ninguém nunca ousa sentar ao meu lado.
Mesmo os filhos de duques preferem ficar duas fileiras longe.
É uma mistura de respeito e medo.
E eu me acostumei.
Ou… achei que tinha.
Mas naquela semana, no dia que tudo ia mudar, algo me atingiu sem aviso.
Não foi uma arma.
Nem uma ameaça.
Foi…
Um par de olhos vermelhos.
Um cabelo branco como neve.
E um sorriso que não pedia permissão para existir.
Ela entrou.
E o mundo inteiro pareceu prender a respiração.
Mas naquela hora, eu ainda não sabia o nome dela.
Ainda não sabia que aquela garota, com sua beleza silenciosa e postura afiada…
Ia me virar do avesso.
Às vezes, fecho os olhos e ainda consigo sentir.
Aquela fração de segundo em que o mundo inteiro parou.
O barulho sumiu.
O tempo sumiu.
E só restou ela.
A garota de cabelo branco.
E o beijo.
Mas vamos voltar.
Era o primeiro dia dela na escola.
Katherine D’Argent.
Filha adotiva do braço esquerdo do rei — um homem tão influente quanto discreto.
E ela não passou despercebida.
Ninguém ali conseguia ignorar sua aparência — os olhos vermelhos como se o inferno tivesse nascido neles, a postura firme, a beleza perigosa.
Mas não era só isso.
Havia algo errado nela.
Algo que me fazia… reagir.
Mesmo sem saber por quê.
Naquele dia, o alerta vermelho tocou antes do primeiro intervalo.
Algo invadiu os muros.
Algo que nem os feitiços da Coroa detectaram.
Todos correram.
Eu corri com eles.
Mas sem medo — porque fui criada para controlar o medo.
No meio da confusão, virei um corredor e…
PAH.
Esbarrei.
Forte.
Mas o que me atingiu não foi só o impacto.
Foi o calor dos lábios dela.
Nos meus.
Um beijo.
Acidental.
Caótico.
Perfeito e… impossível de esquecer.
Por um segundo, perdi o controle.
E eu não perco o controle.
Ela se afastou primeiro. Claro.
— “Pelo menos agora posso dizer que beijei realeza,” ela disse, com aquele maldito sorriso no canto da boca.
Minha reação?
Arrogância.
Raiva.
Desprezo.
Mas por dentro?
Algo se quebrou.
Ou talvez… algo tenha começado.
Desde então, observo Katherine como se ela fosse um enigma que só eu posso decifrar.
Porque mesmo entre os perigos do mundo, os monstros do reino, os espiões, as ameaças…
Nada me tirou do eixo como ela.
Nada teve o mesmo gosto.
O gosto de desafio.
De ferida aberta.
De destino invertido.
Doce… e afiado.
Acordei antes do sol. Como sempre.
O castelo tinha cheiro de chá de jasmim e vigilância.
As criadas evitavam fazer barulho — não por medo, mas por respeito.
A Rainha Violette, minha mãe, não aceitava menos do que silêncio elegante.
Ela mesma veio me ver naquela manhã.
— “Hoje é o primeiro dia da nova aluna, não é?” — disse, enquanto ajeitava uma mecha do meu cabelo com dedos frios e firmes.
— “É.”
— “Filha do Conselheiro D’Argent. Fique de olho nela.”
Ela saiu da sala antes que eu pudesse perguntar o porquê.
Como sempre.
A escola me recebeu com os sussurros de sempre.
Olhares disfarçados, reverências escondidas.
Mas havia algo novo no ar — tensão. Expectativa.
Foi então que a vi.
Ela.
Entrando pela porta com um andar que não pedia licença.
Cabelo branco, liso como gelo.
Olhos vermelhos. Quentes como sangue recém-derramado.
Katherine D’Argent.
E o destino, com seu senso de humor cruel, decidiu que ela se sentaria ao meu lado.
Senti cada músculo do meu corpo endurecer.
— “Você de novo…” murmurei, incapaz de controlar o tom.
Ela respondeu com veneno e charme.
— “Acho que o destino gosta de ironias.”
Revirei os olhos. Mas por dentro…
Meu coração acelerou.
Por quê?
A aula começou.
Estratégia Real.
Uma das poucas que eu gostava de verdade.
Enquanto o professor falava sobre domar rebeliões e manipular aliados, algo no mapa mágico me incomodou.
Havia uma pulsação estranha. Um brilho sutil nos pontos de fortaleza.
Meu anel captou a magia irregular — mas era fraca, inteligente.
Camuflada.
Olhei para o lado.
Kath também tinha parado de escrever.
Ela não parecia surpresa.
Nem assustada.
Apenas… concentrada.
Foi ela quem se levantou primeiro.
— “Senhorita D’Argent, aonde pensa que vai?” — a professora questionou.
A resposta dela me fez gelar:
— “Evitar que metade da realeza vire carvão, professora.”
Todos começaram a rir.
Achavam que era provocação.
Mas eu… me levantei também.
Vi quando ela correu até o canto da sala e chutou a parede falsa.
Vi o brilho do dispositivo mágico — rúnico, instável, mortal.
Uma bomba mágica.
Meus dedos apertaram o anel, preparando o escudo protetor.
Ela ajoelhou no chão com a calma de quem já viu a morte de perto.
E começou a desarmar.
Rápida. Silenciosa.
Como se tivesse feito aquilo mil vezes.
— “Você sabe o que está fazendo?” — perguntei, me aproximando.
— “Sim. E se você continuar falando, vou perder o fio de mana e explodir o prédio.”
Silêncio.
Ninguém mais ria.
Quarenta segundos depois… a bomba estava inativa.
Ela se levantou, arrumou a saia como se tivesse acabado de derrubar um café.
E disse:
— “A aula foi… interessante.”
Foi ali que entendi.
Essa garota não era só bela.
Nem só inteligente.
Ela era… perigosa.
E pior:
Ela estava escondendo algo.
Eu me aproximei, encarando-a de perto.
— “Quem é você?” — sussurrei.
Ela respondeu sem medo.
— “Alguém que você vai ter que acompanhar de perto, princesa.”
E foi ali…
Que eu soube.
Meu reinado solitário havia acabado.
O jogo começou.
E pela primeira vez em anos…
Eu não estava no controle.
As runas da bomba foram desativadas, mas o protocolo de segurança mágica já havia sido ativado.
As portas da sala se destravaram com um estalo metálico.
O teto brilhou em azul por meio segundo.
E então…
CHHHHHHHHHT!
O sistema de alarme disparou.
Jatos de água encantada caíram do teto, como chuva artificial.
Gelada. Incômoda.
E absolutamente inútil naquele ponto.
— “Alguém desativa isso!” — gritou a professora, tentando proteger os papéis com o corpo.
Os alunos corriam, escorregando como patos desesperados no mármore molhado.
Eu permaneci parada.
Ensopada.
Fria.
Furiosa.
Mas não pela água.
Pela humilhação.
Então ouvi a voz dela.
A dela.
— “Se vocês não saírem da sala agora, vão virar sopa de nobreza…”
Me virei.
Ela estava parada à porta, o cabelo branco grudado no rosto, mas ainda assim… deslumbrante.
Nem parecia molhada de verdade.
Como se a água se recusasse a envergonhá-la.
E então ela fez algo que me destruiu por dentro:
Sorriu.
Diretamente.
Para mim.
Com aquele maldito brilho nos olhos.
Não um sorriso comum.
Não de vitória.
Nem de sarcasmo.
Era um sorriso de quem estava se divertindo.
Comigo.
Com o fato de eu estar toda molhada… enquanto ela, aparentemente, dominava tudo.
Eu encarei de volta, tentando manter a postura.
Mas foi impossível esconder o rubor no rosto.
Frio? Raiva? Vergonha?
Ou algo mais complicado do que eu queria admitir?
Katherine me olhou mais uma vez antes de sair da sala com passos tranquilos, como se tivesse vencido um jogo que ninguém sabia que estava acontecendo.
E eu fiquei ali.
Com os fios pingando.
Com a classe murmurando.
Com o coração batendo rápido demais para ser só raiva.
Foi nesse instante que eu entendi algo terrível:
Katherine D’Argent não era só um problema.
Ela era um espelho.
E eu odiava… tudo o que via refletido.
Minhas roupas ainda pingavam.
Meu cabelo grudava nas costas como uma coroa derretida.
A classe havia sido evacuada, mas a minha mente continuava presa naquela sala.
Naquela cena.
Naquele sorriso.
Naquela garota.
Eu, Lua Valenhardt, herdeira da coroa, orgulho do reino, treinada desde os três anos para não demonstrar fraquezas… estava indo atrás de alguém.
E pior: pra confortar.
O que exatamente me deu essa ideia?
Piedade?
Culpa?
Curiosidade?
Ou o fato de que… por um breve segundo, ela pareceu sozinha?
E eu entendo muito bem como isso é.
Saí pelos corredores, ignorando os olhares dos guardas, das criadas, dos alunos encharcados e confusos.
Ninguém ousava me parar.
A segurança da escola dizia que Kath havia saído pelos fundos.
Claro que sim.
Padrão.
Peguei o caminho da ala leste — onde ficam os corredores menos movimentados, quase esquecidos. Um dos poucos lugares onde se pode respirar sem o peso de tronos e julgamentos.
E lá estava ela.
Sentada num parapeito de pedra, com as pernas cruzadas, olhando para o céu cinzento.
O cabelo ainda úmido, mas rebelde.
As costas retas.
A expressão… vazia.
Um vazio que eu conhecia bem.
Me aproximei devagar.
Ela me ouviu, claro.
Sem nem virar o rosto.
— “Princesa,” disse, com a voz calma. “Veio me dar uma medalha ou uma detenção?”
Suspirei.
— “Vim…”
Pausa. Eu odiava pausas.
— “…ver se você está bem.”
Ela arqueou uma sobrancelha e, enfim, virou o rosto para mim.
— “Você se molhou por isso?”
— “Eu me molhei porque você demorou pra desativar o sistema,” respondi, seca, cruzando os braços.
Ela sorriu. Maldita.
— “Fazia tempo que eu não via alguém da realeza ensopada. Foi… divertido.”
— “Você é insuportável.”
— “Você é linda quando tenta me xingar. Sabia?”
Aquilo me desmontou por dentro.
Respirei fundo.
Mas em vez de ir embora, me sentei ao lado dela.
Deixamos o silêncio cair por alguns segundos.
Até que eu falei:
— “Você fez mais do que qualquer um naquela sala conseguiria. Inclusive eu.”
Ela olhou para mim, surpresa real no olhar.
Como se não estivesse acostumada com elogios sinceros.
— “Achei que você fosse me odiar.”
— “Ainda posso.”
Sorriso discreto.
— “Mas não agora.”
Por um instante, achei que ela fosse dizer algo sarcástico.
Mas ela só ficou quieta.
E então, bem baixinho, quase sem me olhar:
— “Obrigada.”
E foi ali.
Não no beijo acidental.
Não no sorriso provocador.
Mas ali, naquela frase simples…
… que eu soube que alguma coisa dentro de mim havia começado a ruir.
E eu nem sabia se isso era bom ou ruim.
Só sabia que… não queria ir embora.
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Atualizado até capítulo 70
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