A ALMA QUE FICA

Helena estava no banco de trás do carro.

Os fones no ouvido abafavam a discussão que ecoava nos bancos da frente, mas ela ainda via os gestos. A voz da mãe subia. O pai gritava. De novo.

— Você acha que eu não sei? Que você não está me traindo com aquela mulherzinha? — a mãe cuspiu, com os olhos marejados.

— E você acha que ter uma filha lésbica é fácil pra mim? — retrucou o pai, desviando os olhos da estrada por um segundo a mais do que devia.

Helena apertou os olhos, segurando o choro. Já conhecia essa dor. Já conhecia esse tipo de solidão.

Colocou o volume no máximo. Tentou ignorar.

Mas então, viu o caminhão.

A curva. A velocidade. A batida.

O som foi seco. O mundo girou. E tudo ficou vermelho.

Quando abriu os olhos, Helena não sentia mais o corpo.

Viu a si mesma, caída na pista, os cabelos misturados ao sangue. A mãe ao lado, imóvel. O pai preso entre os destroços.

— MÃE! — gritou.

— PAI! ACORDA! POR FAVOR!

Ela correu até o corpo da mãe, tentou abraçá-la, mas não sentiu toque algum.

Atravessou o próprio pai tentando alcançá-lo. Ele não reagiu. Não respirava.

Foi quando percebeu: ninguém a ouvia.

Ninguém a via.

E então olhou para o chão.

Viu o próprio corpo… e soube.

Não estava mais nele.

O desespero tomou conta.

Ela tentou voltar. Mergulhou sobre o corpo. Gritou. Implorou.

Mas era como tentar vestir uma roupa invisível — não cabia mais ali.

Seguiu a ambulância. Chorou o caminho inteiro até o hospital.

Gritava com os médicos. Tentava agarrar a mão da avó que chegava em prantos. Mas passava direto.

Estava presa entre mundos.

E então viu.

Lívia. No seu corpo.

Andando. Falando. Respirando.

Beijando Tamires.

Usando suas roupas.

Sorrindo para sua avó.

Dormindo na sua cama.

Era como assistir alguém engolir tudo que restava dela.

E ela não podia fazer nada.

A dor de ver sua vida sendo vivida por outra pessoa, enquanto a sua alma vagava solitária, era maior do que perder o próprio corpo.

E o que mais doía… era ver Tamires.

Ver o amor da sua vida beijando outra boca… usando o seu nome… e acreditando que ainda era ela.

Helena se encolheu num canto do quarto, invisível.

Suja de poeira, de sangue, de memórias.

E naquele silêncio entre mundos, tudo que ela conseguia pensar era:

“Essa vida ainda é minha. Eu ainda estou aqui.”

As noites eram as únicas portas que Helena ainda tinha.

Quando todos dormiam, quando os corpos descansavam e os pensamentos desaceleravam, o véu entre os mundos parecia se tornar mais fino.

Era nesses momentos que ela tentava se fazer presente.

Naquela madrugada, Lívia dormia abraçada ao travesseiro de Helena, os fios de cabelo espalhados pelo lençol como se fossem dela.

Suspirava como quem carrega o peso de duas vidas.

E então o quarto escureceu.

A brisa entrou pela janela, mesmo que estivesse fechada. O abajur piscou. O espelho embaçou, como se alguém tivesse soprado sobre ele.

E Helena estava ali.

Pairava ao lado da cama, os olhos cheios de lágrimas, a boca tentando formar palavras que não saíam.

— Lívia... — tentou dizer, mas nada. Nenhum som.

A voz se dissolvia antes de nascer.

Ela se ajoelhou ao lado da cama e tocou o rosto de Lívia, que se remexeu, inquieta, até finalmente afundar num sonho estranho.

No sonho, estava no meio de um corredor escuro. Havia espelhos por todos os lados, refletindo versões suas — algumas com seu rosto, outras com o rosto de Helena.

Uma dessas figuras se aproximava, de olhos marejados, sem boca, mas com o olhar desesperado.

Lívia recuou, assustada.

A figura tentou tocá-la. Chorava sem som.

Era Helena.

Lívia acordou com o coração disparado, o rosto úmido de suor. Olhou em volta. O abajur piscou novamente.

No espelho do quarto, havia marcas de dedos desenhadas na neblina como se alguém tivesse tentado escrever algo… mas desistido no meio.

Naquela mesma noite, a avó de Helena sonhou.

No sonho, Helena era pequena, com os cabelos presos em maria-chiquinha, sentada no banco da igreja com um olhar triste.

A avó a chamava, mas Helena apenas balançava a cabeça e chorava.

Acordou com um aperto no peito, o nome da neta preso na garganta.

Levantou-se para beber água e, ao passar pela sala, sentiu um vento gelado que não vinha de lugar nenhum.

— Helena…?

Mas não havia ninguém ali.

Tamires também teve um sonho.

Estava sentada no banco do pátio da escola, como tantas vezes, esperando por Helena.

Helena apareceu.

Mas algo estava errado.

Ela não sorria. Não falava.

Apenas olhava, com os olhos suplicantes.

Tamires tentou abraçá-la, mas Helena recuou, apontando para trás dela, para uma sombra no espelho de um celular que Tamires segurava.

A imagem refletida não era de Helena.

Acordou ofegante, com lágrimas nos olhos.

E em algum lugar entre os sonhos, Helena chorava.

Era um grito preso num corpo ausente.

Uma presença tentando ser notada.

E mesmo sem voz…

ela começava a ser sentida.

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Comments

Kally Cardoso

Kally Cardoso

caraca, que profundo

2025-07-03

1

Kally Cardoso

Kally Cardoso

tadinha cr😔

2025-07-03

1

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