O CORPO ADORMECIDO

O céu ainda estava escuro quando Lívia saiu de casa sem fazer barulho.

Calçou os tênis silenciosamente, pegou a mochila e fechou o portão com o cuidado de quem carrega um segredo.

Não podia mais esperar. Precisava ver seu corpo. Precisava saber se ainda havia algo dela ali.

Pegou um ônibus com destino à cidade vizinha. Duas horas de viagem em que o coração batia como um tambor descompassado. O mundo passava pela janela, mas ela só conseguia pensar em uma coisa: e se o corpo estivesse vazio?

O hospital era grande, frio, com cheiro de antisséptico e passos apressados ecoando pelos corredores.

Na recepção, tentou parecer firme.

— Por favor... Lívia Rocha. Queria saber o quarto.

A enfermeira consultou a ficha com olhar cansado e respondeu, com um suspiro breve:

— Quarto 213. Mas as visitas só começam em uma hora, querida.

Lívia assentiu, agradeceu, e se afastou fingindo procurar um lugar para sentar. Assim que a mulher se virou, ela sumiu corredor adentro. O caminho parecia conhecido, mesmo sem nunca ter estado ali — como se o corpo ainda chamasse por ela.

Do outro lado da porta entreaberta, viu sua mãe sentada ao lado do leito.

Cabeça baixa, mãos entrelaçadas, ombros tremendo em silêncio. Chorava com o tipo de dor que não fazia barulho — aquela que engasga e queima por dentro.

Lívia não conseguiu conter as lágrimas. Encostou-se na parede e chorou também, baixo, escondida, sufocada por um nó na garganta. Queria gritar “mãe”, correr e abraçá-la, mas não podia.

Ela era uma estranha para aquela mulher. O corpo estava ali, mas ela não estava nele.

Pouco depois, a mãe se levantou, limpando o rosto às pressas, e saiu com passos pesados. Talvez fora falar com o médico, talvez só precisasse respirar.

Era a chance.

Lívia entrou devagar no quarto.

No centro, entre lençóis brancos e fios, estava ela.

O corpo parecia menor, quase frágil. Os olhos fechados, o rosto pálido, o peito subindo e descendo com dificuldade graças às máquinas. Mas era ela. Era o corpo que já não era mais seu.

Lívia se aproximou. Tocou a própria mão com os dedos trêmulos. Sentiu a pele fria, alheia.

Se ajoelhou ao lado da cama, com o rosto pressionado sobre o colchão.

As lágrimas caíram sem controle.

— Por favor… por favor, Helena… se você está aí… me deixa voltar — sussurrou, entre soluços. — Esse corpo é meu… e o seu está aí fora, perdido… a gente só trocou de lugar, não foi?

Nenhuma resposta.

Ela ergueu o rosto, encarando os olhos fechados de si mesma.

— Me escuta, por favor. Eu preciso voltar. Eu… não sei mais quem sou aqui fora.

Tocou o rosto do corpo, alisou os cabelos, implorou em silêncio, gritou por dentro.

Mas o corpo não respondeu.

Estava ali… e ao mesmo tempo, longe demais.

Fechou os olhos e pediu — com todas as forças que restavam — que Helena aparecesse. Que dissesse qualquer coisa. Que desse um sinal.

Mas Helena não apareceu.

E naquele quarto estéril, entre máquinas e solidão, Lívia teve sua primeira certeza desde o acidente:

Talvez não houvesse volta.

Lívia saiu do hospital como quem carrega o mundo nas costas.

Cambaleava pelos corredores com os olhos vermelhos, a visão embaçada e o coração despedaçado. Cada passo doía como se os ossos estivessem se quebrando por dentro.

O sol já havia começado a descer no céu quando o ônibus a deixou de volta na pequena cidade. O caminho até a casa da avó foi um borrão de paisagens, um silêncio sufocante.

Ela empurrou o portão e entrou.

A avó estava na cozinha, mexendo uma panela, mas parou ao ver a neta — ou melhor, a garota no corpo da neta — entrar com os olhos inchados e os ombros curvados pela dor.

Não fez perguntas.

Apenas se aproximou, silenciosa, e a envolveu em um abraço apertado, de cheiro conhecido, de colo antigo.

— Seus pais te amavam muito, Helena. Nunca duvide disso.

Aquelas palavras cortaram Lívia por dentro.

A avó falava com doçura, com amor... mas falava com alguém que ela não era.

Ela chorou. Chorou até o corpo fraquejar.

Chorou porque seus pais estavam vivos.

E acreditavam que sua filha estava morta.

Mas ela estava aqui.

Presente, pulsante e invisível.

Subiu as escadas e entrou no quarto de Helena como quem invade um espaço sagrado. Não tirou os sapatos, nem ligou a luz. Se jogou na cama ainda com a mochila nas costas e afundou o rosto no travesseiro.

O cansaço veio como uma onda.

Adormeceu.

No sonho, o tempo voltou.

Estava no banco do passageiro. O rádio tocava alto.

Joan Jett cantava “I love rock ’n’ roll”, e sua mãe batucava no volante, rindo.

— Vai, Lívia! Canta comigo!

Lívia, aos risos, se jogava na música. A voz alta, os cabelos ao vento, o rosto feliz.

As duas estavam em sintonia perfeita.

Era uma felicidade simples, real.

A última.

Porque ninguém viu o carro vermelho vindo na curva.

Nem o barulho do freio gritando contra o asfalto.

A batida foi seca.

Tudo se apagou.

Lívia acordou com um grito preso na garganta, o rosto suado, o peito arfando.

O quarto estava escuro, silencioso, e por um segundo, ela não soube se ainda estava viva.

Mas estava.

Estava ali, no corpo de outra garota, com o peso de uma vida que não era sua.

E agora… com a lembrança vívida do momento em que tudo mudou.

Mais populares

Comments

Kally Cardoso

Kally Cardoso

é aquele ditado, Às vezes, o silêncio pesa mais que mil palavras

2025-07-03

1

Bπanyyyy💜

Bπanyyyy💜

acho que ficar vivendo a vida da outra pessoa e muito difícil

2025-07-05

0

Bπanyyyy💜

Bπanyyyy💜

talvez não houvesse volta mesmo 😕

2025-07-05

0

Ver todos
Capítulos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!