VOZES DO SILÊNCIO

A noite caiu tranquila, e pela primeira vez desde o acidente, Lívia adormeceu com o corpo inteiro entregue ao cansaço. Mas a paz não durou.

Em meio ao breu do sono, uma imagem se formou.

Neblina.

Um campo aberto, silencioso, com cheiro de terra molhada. E ali, no meio, uma garota chorava.

Os olhos eram escuros, os cabelos longos estavam bagunçados, e o rosto — apesar de familiar — parecia mais pálido, mais sofrido.

Helena.

Ela tentava falar. A boca se mexia com desespero, mas não havia som.

Se aproximou. Tocou o rosto de Lívia com as pontas dos dedos, trêmulas. Chorava como se implorasse por algo.

E Lívia, paralisada, queria perguntar, queria dizer algo… mas também não conseguia. As palavras se prendiam dentro do peito.

O sonho se quebrou com um sobressalto.

Lívia acordou suada, o coração acelerado.

O quarto estava escuro, mas uma brisa suave passou por sua pele e a fez estremecer. Como se algo tivesse passado ali. Ou alguém.

Ela se sentou na cama, ofegante. O rosto de Helena ainda estava gravado em sua memória. A dor em seus olhos… o toque em seu rosto… não era um sonho qualquer. Parecia real. Era real.

Ela passou o resto da madrugada em silêncio, o corpo coberto por um frio estranho, o coração inquieto. Abriu o notebook e começou a pesquisar:

“Experiência fora do corpo.”

“Espírito tentando contato durante o coma.”

“Sonhar com pessoas vivas em coma.”

As horas correram e o céu clareou devagar.

Quando o sol invadiu a janela, ela já estava sentada à beira da cama, tentando parecer mais forte do que se sentia.

Desceu para a cozinha. O cheiro de café recém-passado enchia o ar, mas o estômago parecia fechado.

A avó a observava com delicadeza. Não insistiu. Apenas anunciou com voz baixa:

— A Tamires está te esperando lá fora, pra irem juntas.

Lívia assentiu, deixou a caneca intocada e saiu apressada.

Lá fora, Tamires a esperava encostada no portão, com a mochila pendurada de um lado e expressão atenta.

— Você está pálida — disse, preocupada. — Não dormiu bem?

Lívia hesitou.

— Tive um pesadelo… mas agora estou melhor.

Tamires tocou sua mão com carinho.

— Se quiser conversar sobre os seus pais… tô aqui, tá?

Lívia forçou um sorriso e desviou os olhos.

— Não, tô bem. Juro.

Tamires assentiu com um olhar que dizia “não acredito, mas respeito”.

Elas começaram a caminhar pela calçada em silêncio, mas o silêncio agora parecia mais confortável. Lívia, mesmo ainda tremendo por dentro, sentia que algo entre elas crescia. Um elo — não seu, mas de Helena — se estendia sobre ela.

O depósito atrás do prédio de Ciências era o esconderijo preferido de Helena e Tamires — um lugar apertado, empoeirado, entre caixas e equipamentos velhos, onde a escola parecia desaparecer.

Lívia não conhecia aquele lugar, mas seu corpo reagiu com familiaridade, como se guardasse memórias que ela mesma não viveu. Era como se o corpo dela — ou melhor, o corpo de Helena — soubesse exatamente o que fazer ali.

Tamires a puxou com doçura, o olhar cheio de saudade.

— Aqui é o nosso lugar...

Antes que Lívia respondesse, Tamires se inclinou e a beijou.

Diferente do beijo no corredor dias antes, aquele era profundo, demorado, cheio de urgência contida.

O coração de Lívia disparou. Um turbilhão de sentimentos a tomou: culpa, desejo, medo, confusão. As mãos tremiam, mas, como se guiadas por instinto ou por algo mais antigo, ela tocou o corpo de Tamires com hesitação.

Foi quando Tamires se afastou bruscamente, as bochechas coradas e a respiração acelerada.

— Não… — disse, tentando manter a compostura. — Esqueceu que só vamos fazer sexo quando tivermos dezoito?

Lívia recuou de imediato, tomada por uma onda de vergonha que parecia afundá-la inteira. Ela não era a namorada de Tamires. Não de verdade.

Aquela promessa… aquele toque… aquele amor… não eram dela.

E mais do que isso — ela nem sabia por que tinha tentado ir além. Nunca havia sentido esse impulso com nenhum dos meninos com quem saíra. Sempre se esquivava, desconfortável com a ideia de algo mais íntimo. Mas agora…

— Desculpa — disse ela baixinho, evitando olhar nos olhos de Tamires. — Eu… esqueci.

Tamires sorriu com gentileza e segurou sua mão.

— Tá tudo bem. A gente passou por muita coisa. Daqui a dois meses é o nosso aniversário… vamos pensar nisso depois, tá?

Lívia apenas assentiu.

Foi quando um estrondo seco fez ambas se virarem com um sobressalto.

Caixas que estavam empilhadas ao lado despencaram sozinhas, espalhando papéis velhos e materiais de laboratório pelo chão.

As duas ficaram paralisadas.

E então, a brisa gelada atravessou o cômodo, cortando o calor do momento como uma lâmina invisível.

Lívia estremeceu. Cada pelo de seu corpo se arrepiou.

Ela não precisava ver para saber: Helena estava ali.

Algo naquela presença era intensa demais, pesada demais. Não era só tristeza — era ciúme, raiva, angústia.

— Você sentiu isso? — perguntou Tamires, franzindo a testa. — Foi só o vento?

Lívia não respondeu. Estava pálida, o coração martelando no peito.

Helena sabia.

E, de algum modo, estava tentando dizer que ainda estava ali.

...Mas por quanto tempo ela conseguiria viver essa vida que não era sua?...

...E quanto tempo mais Helena aguentaria, perdida, sozinha… do outro lado?...

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Comments

Maria Andrade

Maria Andrade

autora eu gostaria de saber como essas duas almas se cruzaram em que momento a Lívia assumiu o corpo de Helena, estou curiosa

2025-06-18

0

Kally Cardoso

Kally Cardoso

claro, Lívia tá beijando a mulher daHelena kkk difícil ficar só olhando ou nem isso 😅

2025-07-03

1

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