ALMA DESALINHADA

ALMA DESALINHADA

O CORPO QUE NÃO ERA SEU

A coisa mais assustadora do mundo é descobrir que sua alma não está mais no seu corpo.

Quando abriu os olhos, Lívia esperava ver o teto do seu quarto, o abajur lilás ao lado da cama, ou até mesmo o sorriso aflito da mãe. Mas o que viu foi um quarto branco e impessoal, com o zumbido baixo de uma máquina monitorando batimentos. O cheiro de hospital era sufocante. Pessoas que ela não reconhecia estavam ao redor da cama, chamando-a por um nome que não era seu: Helena.

Alguns choravam. Outros sussurravam palavras de consolo:

— Sinto muito... seus pais... foi um milagre você ter sobrevivido.

Milagre? Sobrevivido? Lívia tentou falar, mas sua garganta arranhava, seca, como se tivesse engolido areia.

Seu corpo doía. O mundo girava lentamente. Ela fechou os olhos por um instante, tentando buscar algo que fizesse sentido, mas tudo vinha em pedaços: um carro, um grito, vidro estilhaçado… depois, o silêncio.

Quando o quarto ficou vazio, ela se levantou com esforço. O chão parecia distante, o corpo pesado e estranho. As pernas vacilaram, mas ela se apoiou na parede até alcançar o banheiro.

Acendeu a luz. O reflexo no espelho a congelou.

A menina que a olhava de volta tinha os mesmos olhos assustados… mas não eram os dela. O rosto era outro. O corte do cabelo, o formato do nariz, os lábios mais finos.

Aquilo não era um pesadelo.

Ela tocou o próprio rosto com as mãos trêmulas. A pele era real. O toque também. Mas a identidade, não.

— Quem... quem é você? — sussurrou, encarando a estranha no espelho. Mas a resposta veio do próprio eco.

Seu peito se apertou. O coração disparou. Era como se estivesse presa dentro de uma fantasia desconfortável — viva, mas deslocada. Lívia sentia que tinha sido arrancada de si mesma e jogada em outra existência.

E o mais apavorante? Aquela outra existência não era um vazio: era a vida de alguém. Uma vida que, aparentemente, ela agora ocupava.

Mas onde estava sua vida?

Onde estava seu corpo?

E assim começou o que Lívia jamais imaginaria: a busca por si mesma. A verdade por trás da troca. E a tentativa de consertar o que o destino – ou algo muito mais antigo e obscuro – havia desalinhado.

A estrada até o interior parecia se arrastar. A cada quilômetro, a angústia dentro de Lívia aumentava como uma espiral apertando seu peito. Ela olhava pela janela do carro como quem busca uma pista, um fio de memória que pudesse puxar para entender o que estava acontecendo. Mas tudo era vazio. Um buraco no lugar das lembranças.

Chamavam-na de Helena. Diziam que ela havia sobrevivido ao acidente. Que seus pais estavam mortos. E que agora viveria com a avó.

Mas nada disso fazia sentido. Ela não era Helena. Ela era Lívia.

Ou… tinha sido. Agora não sabia mais quem era.

A casa era antiga, de madeira escura e janelas altas. Um cheiro leve de ervas e madeira úmida escapava da varanda. Dona Cecília, a avó, a recebeu com um abraço calado, como se o silêncio dissesse mais que qualquer palavra. Não sorriu. Não chorou. Apenas a conduziu para dentro, com mãos firmes e olhos que pareciam guardar uma história longa demais.

— O seu quarto está do mesmo jeitinho que você deixou, minha flor — disse com carinho, sem desconfiança, como quem realmente acreditava que aquela alma era sua neta.

Lívia assentiu, engolindo o nó na garganta.

Subiu as escadas com passos hesitantes, como se pisasse em território sagrado e proibido. Ao abrir a porta do quarto, sentiu um arrepio percorrer a espinha.

Tudo ali gritava o nome de outra pessoa.

Livros de fantasia empilhados na estante. Um mural de fotos com sorrisos desconhecidos. Um urso de pelúcia com fita azul na cadeira. Pôsteres colados com fita colorida. E um aroma doce de baunilha e lavanda pairando no ar.

Sentou-se na beirada da cama e respirou fundo. Fechou os olhos, forçando-se a lembrar. Uma fresta, um lampejo do acidente. Mas nada vinha. Apenas o eco de um grito e a sensação de queda. Era como se algo tivesse sido apagado. Arrancado à força.

Inquieta, começou a mexer nas coisas — não por curiosidade, mas por desespero. Como se entre cadernos e recordações houvesse uma resposta.

Foi quando encontrou o diário.

A capa era roxa, com adesivos de estrelas e luas. Ao abri-lo, rabiscos, desenhos, frases soltas. Mas entre as páginas, um verso a fez parar:

"Seus beijos, sua mão em mim é tudo que preciso agora.

T."

Lívia leu e releu, tentando processar aquelas palavras. Então, entre papéis, achou algumas fotos. Em uma delas, Helena sorria com uma garota alta, de cabelos curtos e olhos castanhos claros, os braços entrelaçados com carinho. No verso da imagem, uma dedicatória escrita com letras desenhadas:

"De sua namorada, Tamires. Eu amo você."

Lívia deixou a foto cair em cima da cama. O coração disparou. A cabeça rodava.

Ela agora tinha… uma namorada?

Não bastava estar presa num corpo que não era seu. Agora tinha uma vida nova, cheia de relações e histórias que ela não conhecia — mas que todo mundo esperava que ela conhecesse.

Um corpo novo.

Uma avó nova.

Uma casa desconhecida.

E os seus pais…?

Pegou o notebook em cima da escrivaninha. Abriu o navegador. Mãos trêmulas no teclado. Pesquisou “Lívia Ramos acidente”. Algumas notícias surgiram, junto com a imagem do seu rosto real — olhos fundos, cabelos escuros, corpo intubado, deitado em uma cama de hospital.

Seu corpo.

Ali. Em coma.

Tentou buscar o número do telefone dos pais. Ligou.

Chamou três vezes. Depois, uma voz conhecida atendeu. A voz da mãe.

— Alô?

Ela engoliu seco.

— Mãe… sou eu… sou a Lívia.

Houve uma pausa do outro lado da linha. Um silêncio cruel.

— Isso não tem graça — respondeu a voz, dura, magoada. — Minha filha está em coma. Pare com essa brincadeira.

A ligação caiu.

Lívia permaneceu parada. O notebook ainda em sua mão. O quarto em silêncio. O coração em pedaços.

Ela não era Helena. Mas agora era tratada como se fosse.

E o mundo não tinha mais lugar para a verdadeira Lívia.

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Comments

Bπanyyyy💜

Bπanyyyy💜

Nossa mais que história em fiquei curiosa agora!?

2025-07-04

1

Kally Cardoso

Kally Cardoso

foi dormir solteira e acordou no universo alternativo com uma namorada e zero manual de instruções 😅

2025-07-01

1

Kally Cardoso

Kally Cardoso

Assustador e profundo, perceber que se vive a vida de outra pessoa é como encarar um espelho que não te pertence.

2025-07-01

1

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