NOS OLHOS DELA

O portão da escola parecia um portal para outro mundo — um mundo onde todos esperavam que ela fosse alguém que não era. Lívia parou por um segundo antes de entrar, sentindo o peso dos olhares. Um grupo de alunos se aproximou imediatamente, e ela mal teve tempo de respirar.

— Helena! — uma menina chorando se jogou em seus braços.

— Você é muito forte… eu não conseguiria sobreviver sem meus pais.

— A escola inteira ficou em choque com o acidente.

— A gente sentiu tanto a sua falta…

Eram abraços, mãos tocando seu ombro, vozes apressadas, emoções que não eram dela. Lívia se esforçava para não demonstrar o desespero que se espalhava por dentro como um incêndio. Ela apenas sorria, assentia, dizia “obrigada”, como se cada palavra não fosse uma mentira costurada às pressas.

Mas então, do outro lado do pátio, os olhos dela encontraram outros olhos.

Tamires.

Alta, cabelos curtos, olhar firme — exatamente como na foto do quarto. Ela não disse nada. Não se aproximou. Apenas a observava. O rosto carregado de algo que Lívia não conseguiu decifrar de imediato: saudade, dúvida… e algo mais profundo.

Lívia desviou o olhar e entrou apressada na sala de aula. Sentou na última carteira, como quem tenta desaparecer.

O professor falava, os alunos anotavam, o tempo passava. Mas Lívia não ouvia. O mundo parecia abafado, como se ela estivesse debaixo d’água. Só conseguia sentir aqueles olhos ainda nela. Os olhos de Tamires.

E então o sinal tocou.

Antes que pudesse se levantar, Tamires surgiu ao seu lado. Sem dizer nada, puxou Lívia pela mão com firmeza. A pele delas se tocando arrepiou o corpo inteiro de Lívia. Ela tentou protestar, mas não havia palavras. Foi levada por corredores até uma sala vazia e escura, provavelmente de apoio pedagógico.

A porta se fechou atrás delas.

Tamires a olhou por um longo instante. E sem aviso, sem hesitação, a beijou.

Foi um beijo cheio de urgência e dor. Um beijo de reencontro e medo.

— Senti sua falta — sussurrou entre os lábios. — Achei que fosse te perder.

Lívia ficou imóvel por um segundo, assustada com o impulso, com o calor, com o fato de estar sendo beijada por uma garota. Por uma garota apaixonada por Helena.

Mas havia algo no toque, no gosto da boca de Tamires, que fez seus olhos se fecharem. E por um breve instante, ela se permitiu. Não era seu corpo, nem sua história… mas aquele beijo despertava nela algo que não sabia nomear.

Quando se separaram, Tamires manteve a testa colada à dela.

— Você está diferente. — murmurou, olhando nos olhos dela. — Mas tudo bem… você perdeu seus pais. Eu sinto muito.

Lívia só conseguiu assentir. O coração batia rápido demais. E o chão parecia instável.

Ela queria dizer a verdade, mas como se diz a alguém: “A pessoa que você ama está em coma. E sou só alguém presa no corpo dela”?

Lívia caminhava ao lado de Tamires pelo corredor da escola, sentindo cada passo pesar como se estivesse pisando num território que não lhe pertencia. A lembrança do beijo ainda queimava em sua boca — um beijo que não deveria ser seu.

Seu peito apertava, uma mistura de culpa e… algo mais difícil de nomear. Desejo? Curiosidade?

Ela nunca havia beijado uma garota antes. Mas o beijo de Tamires fora quente, terno e ao mesmo tempo carregado de um sentimento que não era dela.

Era de Helena.

E talvez o que mais a inquietasse fosse ter gostado.

Na sala, Tamires passava a mão em seu cabelo, ajeitava seu caderno, cochichava pequenas preocupações no ouvido dela com tanto carinho que Lívia sentia a garganta travar.

Como era a relação entre elas? O que Helena sentia? E... como ela mesma deveria se comportar, sem ferir ninguém — nem Tamires, nem Helena, nem a si mesma?

Ela precisava saber mais.

Assim que chegou da escola, subiu direto para o quarto. O quarto de Helena.

Cada objeto agora parecia lhe dizer: você está ocupando uma vida que não é sua.

Determinada, começou a vasculhar gavetas, caixas e prateleiras. Até que, no fundo do armário, encontrou uma caixa de papelão coberta por uma manta florida. Dentro, diários. Vários.

As capas eram coloridas, algumas com desenhos feitos à mão, outras com fotos coladas.

Sentou no chão, cruzou as pernas e começou a ler.

“Hoje meus pais gritaram de novo. Eles dizem que eu só vou entender quando for adulta. Mas o que tem de errado em amar a Tamires? Ela é minha melhor amiga. E também é o amor da minha vida.”

“Fizemos 1 ano hoje. Ela me deu um anel de prata com a letra H gravada dentro. Eu escondi na minha caixinha de bijuterias, pra ninguém achar. Talvez o amor tenha que ser segredo mesmo.”

“Às vezes penso que se eu sumisse, ninguém ia sentir. Só a Tamires. E isso me dói mais do que tudo.”

Cada página era como um golpe no peito.

A cada frase, Lívia se afundava mais dentro da vida de Helena. Uma garota que vivia em guerra entre o que sentia e o que o mundo exigia dela.

Helena amava profundamente. Lutava. Sofria.

E Tamires… estava com ela há mais de dois anos. Mas a amizade entre elas vinha desde os 12 anos. Uma conexão antiga, cheia de história, de intimidade, de feridas e curas.

Lívia fechou um dos cadernos com as mãos trêmulas.

Agora, tudo fazia ainda menos sentido.

Ela não era só uma intrusa no corpo de Helena. Estava no centro de uma relação cheia de história e dor — e era vista como uma sobrevivente, quando na verdade, ela mesma estava perdida, e seu corpo… em coma.

Suspirou fundo, passando os dedos pela lombada dos outros cadernos, como se pedisse permissão antes de abrir mais um.

Talvez, para sobreviver a isso, ela precisasse continuar sendo Helena.

Mas até quando?

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Comments

Nilva Santos

Nilva Santos

to gostando muito desses primeiros capítulos

2025-06-18

1

Kally Cardoso

Kally Cardoso

Eita! nem um jantarzinho antes? um "oi"😂

2025-07-02

1

Kally Cardoso

Kally Cardoso

é só se vive uma vez, mas ela tá vivendo duas 😂🫴🏾

2025-07-02

1

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