A capital a recebeu com o mesmo ar de superioridade de sempre. Prédios espelhados, seguranças nas portas giratórias, carros de luxo riscando avenidas largas. Os olhares curiosos reconheciam o sobrenome Monteiro como se fosse uma logomarca — e cada olhar lhe lembrava por que partira.
Do banco traseiro, Ashiley observava a paisagem com uma mistura de nostalgia e náusea. Não era saudade; era o peso de retornar ao lugar que jurara não chamar mais de lar. Quando os portões da mansão Monteiro se abriram, o estômago revirou. A fachada permanecia imutável: colunas brancas, jardins matematicamente simétricos, o cheiro de rosas frescas invadindo o hall como assinatura olfativa de bem-vindos-vigiados.
A mãe apareceu primeiro na porta, o sorriso ensaiado como discurso de evento beneficente.
— Minha filha… finalmente em casa. — Dona Lígia a abraçou com mais protocolo que calor. — Você nos deu trabalho com esse sumiço, sabia?
O pai veio logo depois, a mão estendida num aperto que soava a acordo.
— Espero que, desta vez, tenha voltado para ficar.
Ashiley assentiu. Não valia a pena discutir o verbo ficar com quem sempre confundiu presença com desempenho. Um empregado discretamente recolheu a mala nova — a que ela comprara para vestir o papel de noiva Martins — e desapareceu corredor adentro, como se nada naquele lugar pudesse ser pesado por mais de um segundo.
Gustavo surgiu, impecável no terno azul-marinho. O sorriso controlado, eficiente — cada palavra calculada antes de nascer.
— Bem-vinda de volta, Ashiley. — O abraço dele teve a exata medida do cavalheirismo: correto, frio, pontual.
— Obrigada… noivo. — A ironia veio sutil e pousou entre eles como uma nota fora do arranjo. Gustavo a ignorou com a destreza de quem também sabe tocar o instrumento.
Seguiram para a sala principal. Prata polida, flores claras, uma mesa posta sem ocasião — naquela casa, sempre havia ocasião. Um funcionário ofereceu água, café, suco, chá. Ashiley pediu água. A mãe preferiu conduzir a conversa como quem apresenta patrocínio.
— Amanhã teremos um almoço íntimo. Apenas família… e os Martins, claro.
“Íntimo”, pensou Ashiley, encarando os arranjos — nada ali era íntimo. Gustavo apoiou um braço no encosto do sofá, postura de reunião.
— A Monteverdi confirmou o anel. — Ele falou de modo objetivo, sem buscar aprovação. — E o jurídico alinhou o contrato pré-nupcial. Restam detalhes do cronograma.
Contrato. Cronograma. Palavras-pedra. A mãe sorriu como se falassem de flores. O pai meneou a cabeça, satisfeito com a boa condução da pauta. Ashiley encostou o copo na mesa, deixando o círculo de condensação marcar discretamente o tampo de vidro.
— Farei a minha parte — disse, simétrica. — Mas não vou posar para revista.
Um silêncio breve assentou. Dona Lígia mascarou o incômodo com doçura:
— Ninguém falou em revista, querida. Só queremos celebrar esse momento… com discrição.
Discrição com fotógrafos do lado de fora, achou Ashiley, mas a discussão seria um gasto inútil. Gustavo desviou o olhar para o relógio — não impaciente; apenas alinhado ao próximo item da agenda.
— Vou te mostrar o escritório onde alinharemos tudo hoje à tarde — informou. — Prefiro que veja os documentos antes do almoço.
— Perfeito. — Ashiley respondeu com um sorriso que não prometia cessar-fogo, apenas leitura atenta.
Quando o protocolo deu uma folga, ela pediu licença e subiu. O corredor continuava amplo demais, o piso brilhando como se ninguém o tivesse pisado por três anos. No quarto dela, alguém trocara as cortinas. Cheiro de lavanda. Sobre a penteadeira, uma caixa com papelaria nova estampada A.M.. Bem-vinda de volta, assinatura do clã.
Ela passou a mão pela superfície, tateando um passado polido. No espelho, seu reflexo parecia mais alto que antes — talvez fosse só a postura. Recolheu um elástico de cabelo, prendeu um coque prático e deixou a janela entreaberta: um pouco de ar real, ainda que em doses controladas.
Em Jardim de Pedra, Pietro batia pela terceira vez à porta da pequena casa onde Ashiley morara. O silêncio absoluto atrás da madeira era a confirmação que ele temia, mas resistia em aceitar. A janela do quarto permanecia aberta, as cortinas brancas balançando com o vento. Na calçada, caixas vazias: uma mudança apressada.
— Mas que droga… — murmurou, passando a mão pelos cabelos. A lembrança do olhar de Ashiley na joalheria mordia. Frio. Preciso. Como se ele já não coubesse na frase que os unira por anos.
A casa não devolveu resposta. Pietro recuou um passo, mãos nos quadris, olhar perdido como quem tenta decifrar um bilhete que não foi escrito para si.
— Procurando por alguém?
A voz suave o fez girar. Laura estava encostada no carro, sorriso sereno, vestido claro, cabelos soltos, perfume floral. Doçura calibrada.
Pietro inspirou, o incômodo latejando sob a pele.
— Você sabe onde ela está?
Laura caminhou até ele com passos leves, como quem tem pena do chão.
— Ah, Pietro… — tocou de leve o braço dele, compaixão de vitrine. — Você ainda está pensando nela?
Ele arqueou a sobrancelha, silenciando.
— A Ashiley é intensa — ela prosseguiu, um suspiro que pretendia compreensão. — Faz drama por qualquer coisa… some sem explicar, cria crises só pra chamar atenção. — Riu baixo, triste de ocasião. — Deve ser o jeito dela lidar com as coisas.
Pietro cruzou os braços, desviando o olhar para a janela aberta.
— Ela saiu sem avisar. Nem o trabalho, nem os amigos.
— Exato. — Laura concordou, doce. — E você, como sempre, se preocupa mais do que deveria.
Ele a observou de soslaio, desconfiando do algodão em volta das palavras.
— Não é preocupação. Só achei estranho.
Laura inclinou a cabeça, o olhar envolvente como um cobertor em dia de febre.
— Estranho… — assentiu. — Mas, sinceramente? Você deu algum motivo pra ela ficar? — O tom era macio, quase maternal. — Foi sempre claro pra todo mundo que vocês não tinham futuro.
A frase arranhou. Pietro franziu o cenho, mas ela sorriu antes da réplica nascer.
— Desculpa se fui dura. — O toque no braço voltou, ensaiado. — Eu só me preocupo com você. Não vale a pena se abalar por alguém tão… inconstante.
Ele passou a mão nos cabelos outra vez, impaciente.
— Ela é só uma funcionária. Nada além disso.
Laura sorriu mais, satisfeita com o coro.
— Exatamente. Só uma funcionária. — Repetiu a sentença como quem carimba um documento.
Virou-se para ir embora, deixando Pietro diante do vazio armado. O motor do carro dela ronronou, afastando-se devagar. Pietro ficou ali, uma sombra comprida esticada no asfalto da tarde, as cortinas brancas acenando atrás dele — despedida que não passou pela boca.
Na mansão Monteiro, o relógio da parede marcou quatro horas quando Gustavo chamou:
— Podemos? O jurídico nos aguarda por videochamada.
O pai apareceu à porta do escritório, postura de anfitrião que também é credor. A mãe não veio — preferiu supervisionar flores. Sobre a mesa, pastas etiquetadas, canetas de metal, um papel timbrado com a união das iniciais M e M: um grafismo temporário entre Monteiro e Martins. Ashiley sorriu por dentro — o design sempre se apressa a contar uma história antes do tempo.
— Revisaremos cláusulas de confidencialidade, disposições patrimoniais, agenda pública — disse Gustavo, já abrindo a pasta. — Quero sua opinião sobre o limite de exposição.
— Ótimo — respondeu ela, puxando a cadeira. — Tenho algumas propostas.
Ele a encarou um segundo além do necessário. Não surpresa; medição. O jogo ali não era de afeto — era de competência e controle do dano. Ashiley folheou páginas com a calma de quem aprendeu a não tremer na frente de documentos. Riscou um parágrafo com o dedo.
— Aqui. Nada de fotos em residências particulares. E veto a qualquer matéria que mencione Jardim de Pedra.
Gustavo assentiu, prático.
— Concordo. — Voltou-se à tela. — Incluam esses vetos. E mantenham a logística do almoço sem imprensa.
A chamada terminou meia hora depois. Gustavo fechou a pasta, avaliando-a em silêncio como se testasse uma peça nova de tabuleiro.
— Você lida bem com fronteiras — comentou, neutro.
— Aprendi a duras penas — ela devolveu, devolvendo a caneta ao estojo. — E pretendo mantê-las.
— Ótimo. — Ele se levantou. — Amanhã, 12h. Peço pontualidade.
— Terei.
Quando ficou sozinha, Ashiley se apoiou um instante na beirada da mesa. O reflexo dela no vidro devolveu a mesma mulher do espelho do quarto — só que agora com a luz do escritório colada ao rosto. A cela escolhida segue tendo chave do lado de dentro, pensou, e fechou os olhos por um segundo, como quem ajusta a respiração antes da próxima volta.
Lá fora, o jardim exalava rosas. Aqui dentro, os papéis cheiravam a tinta fresca e promessas antigas. O passado batia à janela de vez em quando; ela mantinha a veneziana aberta o suficiente para ver a chuva aproximar — e fechar na hora certa.
Em Jardim de Pedra, Pietro deu dois passos para longe e voltou a encarar a casa vazia. O celular pesou no bolso; ele não ligou. Tentou lembrar quando fora a última vez que tinha dito a palavra ficar e acreditado nela. O vento mexeu as cortinas mais uma vez, como se a cidade respondesse: agora é tarde.
Ele entrou no carro, mas não deu partida de imediato. Sabia por experiência que o silêncio também é um tipo de resposta — e, às vezes, a mais honesta.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 61
Comments
Sueliane Alcantara
ainda não entendi direito o que ela tinha com ele.
2025-08-20
3
Fatima Sitta Vergueiro
o que entendi é que Pietro era namorado de Ash, mas parece que ele s traiu, ela aceitou um casamento com alguém rico e Pietro se danou
2025-08-28
0
Gina
Verdade, eu também ainda nao entendi , mais ja estou ansiosa para desvendar tim tim por tim tim kkkkkkk
2025-09-02
0