O quarto pequeno estava tomado por malas abertas, cabides espalhados e roupas dobradas às pressas. Ashiley sentava-se no chão, pernas cruzadas, uma pilha de camisetas ao lado. Cada peça que tocava parecia carregar uma memória: algumas que aqueciam, outras que preferia esquecer.
Do fundo de uma gaveta, puxou um moletom cinza de Pietro, esquecido meses antes. Os dedos vacilaram um segundo. O cheiro dele já não estava ali; o peso emocional, sim. Sem cerimônia, lançou a peça no fundo de uma sacola de doação. Nenhum vestígio dele iria com ela.
Com os últimos pertences encaixotados, respirou fundo e percorreu o cômodo com os olhos. O refúgio simples agora lhe parecia menor, como se as paredes soubessem que aquele ciclo havia se fechado por dentro.
O celular vibrou no chão, ao lado da mala. Gustavo Martins.
Ela deixou tocar um toque a mais, depois atendeu:
— Alô?
— Ashiley — a voz dele veio direta, sem aquecimento —, está tudo certo com a data da reunião entre as famílias. O casamento segue o prazo combinado.
Ela revirou os olhos, exasperada com a objetividade impecável.
— Claro… porque romance é mesmo o que menos importa aqui, né?
Gustavo não mordeu a isca:
— Preciso que vá à joalheria Monteverdi, no centro. Seu anel de noivado está reservado. Falta apenas você escolher o modelo final para ajuste.
— E se eu não quiser anel nenhum?
— Não é uma opção — seco. — Protocolo.
— Ótimo. — Encerrou antes que a conversa ganhasse mais arestas.
A Monteverdi brilhava sob a fachada de vidro, guardas na porta e atendentes fardados como se servissem a realeza. Ashiley entrou com passos firmes, ignorando o olhar reconhecido da recepcionista.
— Senhorita Monteiro… é um prazer tê-la conosco de novo.
Ela forçou um sorriso educado.
— Apenas me mostre as opções, por favor.
Enquanto a atendente ia buscar bandejas cintilantes, Ashiley se aproximou de uma vitrine, mais para ocupar as mãos do que os olhos. No reflexo limpo do vidro, reconheceu duas figuras ao fundo.
Pietro.
Laura.
Estavam no setor de colares e pulseiras. Laura ria de algo que ele dizia, o braço enlaçado no dele com a naturalidade de quem reclama posse. O estômago de Ashiley se contraiu por um instante — raiva e ironia misturadas.
— De todos os lugares da cidade… — murmurou.
Se Pietro notara sua presença, decidiu fingir que não. Talvez fosse melhor assim. Sem cena. Não mais.
— Aqui estão os modelos, senhorita Monteiro — a atendente pousou a bandeja, um jardim de luzes ordenadas.
Ashiley percorreu os anéis com o olhar de quem avalia um contrato. Pedras, cortes, promessas. Escolheu o primeiro que viu, prático, bonito e impessoal, como convém a quem não pretende pedir ao objeto aquilo que a história não lhe dará.
Enquanto a funcionária anotava os detalhes, uma voz a cortou, mais alta do que o necessário:
— Pietro, este colar ficaria perfeito em mim.
A ênfase veio como um perfume doce demais — proposital. Ashiley não precisou virar para saber. Fingiu indiferença; levantou-se, ajeitou o cabelo e seguiu rumo à saída.
No caminho, Pietro finalmente ergueu os olhos. O susto passou rápido; a hesitação, não.
— Ashiley…
Ela parou meio passo, só o suficiente para encará-lo. O sorriso foi frio, elegante e absolutamente falso.
— Que coincidência, Pietro. — Um olhar breve a Laura. — Vejo que vocês continuam… amigos.
Não lhe deu tempo de resposta. Empurrou as portas de vidro e deixou a rua devolver o ar. O coração acelerado não batia mais por saudade; batia por autopreservação. Sem recaídas.
No bolso, o celular vibrou novamente. Mensagem de Gustavo:
Assim que pegar o anel, me avise. Motorista às 7h. Não quero atrasos.
Ashiley digitou seco:
Tudo certo. Pode mandar.
Levantou o rosto ao céu nublado de fim de tarde. A cidade onde reconstruíra uma vida — chorando, rindo, enganando a si mesma — parecia de repente pequena demais. Entrou na primeira loja de malas, comprou uma bagagem nova: mais noiva de Gustavo Martins do que garota de Jardim de Pedra.
Naquela noite, não dormiu. Organizou documentos, apagou fotos, empacotou livros e objetos de afeto. Cada gesto era uma despedida silenciosa, uma pequena assinatura no rodapé do passado.
No fundo da gaveta, uma caixinha de madeira: cartas nunca enviadas a Pietro e um pingente em forma de estrela — primeiro presente, primeiros meses, primeiras ilusões. Segurou o metal frio por um instante. Depois o atirou ao fundo do lixo. Nada dele iria junto.
Às seis e cinquenta, o interfone tocou. O motorista de Gustavo — um homem de meia-idade, terno impecável, expressão neutra — esperava na calçada.
— Senhorita Monteiro?
— Sim.
Ele carregou as malas até o sedã escuro. Vizinhos se debruçaram nas janelas, curiosidade de sábado cedo.
— Vai viajar, Ash? — arriscou a dona da quitinete ao lado.
Ashiley sorriu com um resto de mistério.
— Só seguindo em frente.
Entrou no carro sem olhar para trás. A cidade diminuiu pela janela conforme atravessavam a avenida em direção à rodovia. O bar de sempre, a praça, a velha escola de música — marcos de uma vida que já não lhe servia.
O motorista ligou o rádio. Uma canção lenta ocupou o espaço entre os dois. Ashiley encostou a testa no vidro frio e observou o horizonte, deixando a mente percorrer os próximos passos como quem estuda um mapa de guerra.
Do outro lado da viagem, ela sabia o que a esperava: uma mansão de janelas altas, protocolos e sorrisos treinados, alianças caras, Gustavo na postura do herdeiro perfeito — e, sobretudo, olhos. Muitos olhos. Famílias, executivos, imprensa, gente que chama casamento de estratégia e amor de ativo volátil. Parte dela se enrijecia ao pensar nisso. Outra parte, a que aprendera a sobreviver, assentia: melhor isso do que continuar invisível para quem um dia importou.
“Se é para sofrer, que seja com glamour”, pensou, e sorriu de si mesma. Talvez não fosse glamour — talvez fosse apenas armadura.
Fechou os olhos e se permitiu um minuto de descanso. Tinha a sensação clara — desconfortável e libertadora — de que não havia mais retorno. O futuro estava decidido. O anel, em produção. A reunião, marcada. O sobrenome Martins crescendo na margem do papel como uma fronteira.
Pietro Santoro ficaria onde merecia: no passado. E se algum dia voltasse a cruzar o caminho dela, encontraria outra mulher no lugar daquela que o esperou: uma que não negocia migalhas, uma que sabe usar o protocolo a favor até que ele deixe de ser uma prisão.
O carro ganhou velocidade na rodovia. Nuvens pesadas se moviam lentas sobre o asfalto molhado. Ashiley abriu os olhos. Não sentia euforia; sentia foco. E uma calma nova, quase tática, como a de quem finalmente escolhe a própria cela — com a chave do lado de dentro.
— Tudo certo com o horário? — perguntou ao motorista, mais para ouvir a própria voz.
— Chegaremos adiantados, senhorita.
Ela assentiu. A música mudou. Lá fora, placas indicavam a proximidade da saída que os levaria ao bairro dos Martins. Ashiley endireitou a postura, alisou sem pensar a barra da jaqueta. Estava pronta. Ou tão pronta quanto alguém pode estar antes de entrar num salão onde nomes pesam tanto quanto promessas.
— Vamos em frente, então — disse, quase num sussurro.
E o carro entrou na alça, como quem vira a página.
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Atualizado até capítulo 61
Comments
Anonymous
Mas, é claro, ficar com quem não está bem aí pra ela?
Melhor seguir em frente, por uma escolha dela, que ela seja feliz.
2025-09-02
1
Fatima Azevedo
acho que ela tomou uma boa decisão deixar o passado pra traz , será que ela vai conseguir esquecer.
2025-07-29
0
Andréa Debossan
Ela seguir em frente td bem ! Agora se enfiar em outro relacionamento ruim não concordo era melhor refazer sua vida sozinha
2025-07-17
2