Capítulo 2 – O Golpe da Herança
O apartamento era meu refúgio. A semana depois que perdi minha mãe e enfrentei a afronta do meu pai... foi um período sombrio, confuso. Luto, raiva... precisei encontrar um jeito de transformar essa dor em ação. A preparação tinha acabado. Novas tatuagens na pele eram meu juramento: o nome de Solange no pulso, sempre presente; a mandala entre os seios, buscando força interior para a luta. Naquela manhã, vesti uma formalidade austera como armadura, respirei fundo e fui até o imponente prédio da empresa do meu pai, o palco do nosso confronto.
A recepção fria e os olhares curiosos não me intimidaram. Exigi falar com Edmundo, minha voz firme. Esperei alguns minutos tensos na antessala fria, até ser conduzida à sala de reuniões principal.
A cena era exatamente a afronta que eu temia. Edmundo na cabeceira da mesa, impaciente. Ao lado dele, a amante com um sorriso falso. Dois advogados neutros folheavam papéis. A atmosfera estava carregada.
Ele me olhou, a surpresa sumindo rápido, substituída pela frieza.
— Ora, veja só quem apareceu. Pensei que sua 'vida independente' a mantivesse ocupada demais para assuntos de família... ou dinheiro. Chegou tarde, Isis. Já estávamos finalizando a partilha. — O sarcasmo na voz dele era óbvio.
Não me movi. A raiva se tornou uma calma perigosa. Meus olhos, duros como pedras, cravaram-se naquela mulher por um instante. Senti um flash de ódio puro, e percebi um leve tremor nos lábios dela antes que eu voltasse meu olhar para ele.
— Tarde? Ou cedo demais... para você, Edmundo? — Usei seu primeiro nome de propósito. — Finalizando o quê? Mal enterramos minha mãe, e você já está dividindo tudo? Que pressa é essa?
Um advogado pigarreou e começou a falar sobre bens e contas.
— Poupem-me dos detalhes por um momento — interrompi. — Antes dessa farsa de "partilha", gostaria de apresentar um documento. Algo que Edmundo esqueceu de mencionar.
Tirei o envelope com o testamento da minha mãe e o coloquei na mesa.
O silêncio ficou pesado. A amante perdeu o sorriso. O rosto do meu pai se contraiu em choque e raiva. Ele não esperava por aquilo.
— Isso não é possível! — Ele bateu com a mão na mesa com tamanha força que os papéis tremeram e uma caneta rolou para o chão. Seu rosto ficou escarlate, as veias saltando nas têmporas, o controle esfarelando. — Essa... essa loucura! Ela não tinha o direito de fazer isso! Passar por cima de mim? Dos meus negócios?! Que tipo de vingança póstuma é essa?!
Na minha mente, a cena do quarto de hospital se refez com clareza dolorosa. A voz fraca da minha mãe, sua mão magra apertando a minha.
"Minha filha," ela sussurrou, a voz um fio. "Sinto muito por tudo isso. Depois que você foi... seu pai mudou. As coisas se complicaram tanto. Eu queria te proteger disso, queria que você tivesse sua vida... seu futuro." Seus olhos marejaram. "Perdoe-me por não ter conseguido evitar essa dor para você."
Aquele pedido de perdão ecoou na minha mente enquanto eu encarava meu pai, a raiva dele um contraste gritante com a fragilidade da minha mãe.
— Ela podia, pai. E fez — minha voz era gélida, cortante, destituída de qualquer emoção exceto uma satisfação amarga que eu não me dei ao trabalho de esconder. Minha postura era de triunfo contido. — Na verdade, muita coisa já havia sido assegurada pela senhora Solage em vida. O testamento aqui — gesticulei levemente para o documento nas mãos do advogado — é apenas a prova formal. Uma última vontade que apenas ratifica o que já estava destinado.
O advogado leu o testamento. A decisão de Solage era clara: todos os bens dela para mim. Incluindo a parte da casa e uma parcela maior das ações da empresa.
A amante empalideceu. Os advogados trocaram olhares.
— Ela podia, pai. E fez — minha voz era fria. — Muita coisa já estava assegurada. O testamento é só a formalidade.
Fiz uma pausa, observando o choque dele.
— E, para seu azar, Edmundo, não havia comunhão de bens. O que era dela, era dela. — Encarei a amante. O sorriso dela sumiu. — Quanto a você... esqueça tudo. Você está na minha casa agora. E não há lugar para aproveitadores. Espero que encontre outro arranjo.
A amante engasgou. Meu pai parecia chocado demais para defendê-la.
— Cada centavo que minha mãe ganhou, cada bem, a parte dela na empresa... tudo é meu. Pela vontade dela. E pela lei. O testamento foi... uma mera cordialidade para que não houvesse dúvidas legais. Ela garantiu que eu tivesse poder. Poder para não precisar de você. E poder para... arrumar a casa. Ah, e mais uma coisa, papai. — Um sorriso gélido curvou meus lábios. Agora, o senhor trabalha para mim. E quanto à casa... bom, vamos brigar por ela. Não deixarei essa aí manchar a imagem da minha mãe.
Um sorriso amargo e vitorioso curvou os lábios de Isis. Aquele era o primeiro golpe. Preciso, calculado, e entregue não apenas por ela, mas pelas próprias ações e palavras finais de sua mãe, orquestradas em vida e formalizadas ali. A batalha pela memória de Solage e pela justiça mal havia começado, mas o primeiro tiro havia sido dado, usando as regras que Edmundo tanto valorizava, e a humilhação pública da amante era um bônus cruel. E ele, pela primeira vez desde que ela voltara para a cidade, parecia genuinamente abalado. Não pela dor da perda de uma esposa, mas pelo baque financeiro absoluto, pela perda do controle, e pela constatação de que Solage foi, no fim, mais esperta que ele. O jogo havia mudado de forma irreversível.
A euforia amarga do confronto no escritório, contudo, não trouxe paz. De manhã, eu vestia a máscara da engenheira impecável. Naquela empresa fria, eu me enterrava no trabalho até a exaustão, fingindo que o caos da minha família não existia. Mas quando a noite caía, outra Isis emergia. Os bares eram um escape barulhento, luzes piscando, música alta abafando meus pensamentos, o calor do álcool... uma busca desesperada por sentir alguma coisa, qualquer coisa que me lembrasse que eu estava viva, mesmo que fosse de um jeito autodestrutivo. Era ali, na escuridão da noite, que eu tentava viver no limite que prometi a mim mesma.
Adriana, preocupada, muitas vezes estava comigo. Ela era minha âncora relutante, arrastada pela minha tempestade. Mas minha necessidade de seguir em frente era mais forte, alimentada por luto, raiva e o poder recém-adquirido.
A cada brinde, eu tentava provar que estava no controle. Mas no fundo, sentia que estava à beira do abismo. A herança era poder, mas a paz... parecia distante. A batalha externa teve uma vitória, mas a guerra interna estava só começando.
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Atualizado até capítulo 60
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