A última semana das férias chegou trazendo algo que ninguém esperava: uma tempestade daquelas de assustar até os adultos mais corajosos. O céu, sempre azul em São Miguel do Vale, escureceu como se tivesse anoitecido antes da hora. As nuvens pesadas se juntaram, o vento uivava pelas frestas das janelas, e a chuva caía como se tentasse lavar o mundo.
Na casa de Clara, o som da água batendo no telhado misturava-se ao silêncio. O pai estava viajando a trabalho — como quase sempre — e a mãe tentava manter a rotina tranquila, embora até ela parecesse um pouco nervosa. Clara fingia ler um livro, mas sua mente não parava de pensar em Gustavo.
Ela sabia que a casa dos avós dele, apesar de cheia de amor, era velha e vivia com goteiras. E conhecendo Gustavo como conhecia, era bem capaz de que ele estivesse aprontando alguma coisa mesmo com aquele temporal.
Como se adivinhasse seus pensamentos, o telefone fixo da cozinha tocou. Ela correu para atender.
— “Oi, Clara? A vó disse que eu não posso sair, mas o galinheiro tá quase voando! Quer vir ajudar a segurar?” — a voz de Gustavo parecia tentar disfarçar a empolgação, mesmo em meio à confusão lá fora.
Ela sorriu, mesmo preocupada.
— “Você é doido. Não, Gustavo! Tá chovendo muito. E se cair um raio?”
— “Aí a gente vira herói de filme. Você segura a cerca, eu seguro o galo!”
— “Você não presta.” — respondeu ela, rindo.
Mas no fundo, queria estar lá.
Minutos depois, outro trovão ecoou, e as luzes piscaram. Clara olhou pela janela e viu o mundo em tons de cinza. Sentia um nó no peito, um incômodo que não sabia explicar. Pegou o caderninho de anotações onde havia desenhado o barco, o mapa do rio e até um esboço da Dona Eulália com uma legenda: “A bruxa que não era bruxa.”
Folheou as páginas lentamente até parar numa folha em branco. Escreveu só uma frase:
“Ele é a minha calmaria, mesmo no meio da tempestade.”
Do outro lado da vila, Gustavo também não conseguia ficar parado. As telhas tremiam, as galinhas gritavam, e o avô resmungava sobre “os tempos de antigamente”. Mas ele não pensava em nada disso. Pensava em Clara. Pensava em como, mesmo sendo tão diferentes, ela era a única pessoa que parecia entender sua cabeça maluca. E, talvez por isso, pegou um pedaço de papel qualquer e escreveu com sua letra torta:
“Quando eu crescer, quero que a Clara continue do meu lado.”
Não mostrou para ninguém. Escondeu no fundo da gaveta, junto com os parafusos que sobraram do barco e uma pedra que ele dizia ser mágica (embora Clara garantisse que era só brita de calçada).
A tempestade durou três dias. Quando finalmente o sol reapareceu, as ruas ainda estavam cheias de lama e galhos. As aulas estavam prestes a começar, e com elas, o fim da liberdade dos dias inteiros juntos. Mas antes disso, Clara foi até a casa de Gustavo.
— “Vim ver se o galo sobreviveu.”
— “Tá firme. Mas o que quase voou foi eu.”
Ela entrou, como sempre fazia, sem pedir licença. Ele a guiou até o quintal, onde o chão ainda escorregava. Havia folhas espalhadas, e uma garrafa de plástico boiava numa poça — um lembrete do barquinho que um dia navegaram juntos.
— “Quando a gente for grande, vamos construir um de verdade.” — disse ele de repente.
— “Um barco?” — perguntou ela, sem desviar os olhos dele.
— “Um sonho.”
E, pela primeira vez, Clara não anotou nada no caderno. Só sorriu. Porque algumas memórias não precisam ser registradas em papel. Elas vivem na alma, como as promessas que não são feitas com palavras, mas com olhares.
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Atualizado até capítulo 44
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