A Amizade que Virou Amor Será?
Capítulo 1 – Laços de Infância
O sol de novembro costumava nascer tímido sobre São Miguel do Vale, um distrito pequeno espremido entre colinas verdes e um rio preguiçoso que cortava a praça central como um espelho partido. Naquele amanhecer específico, as nuvens cor-de-rosa pareciam algodão, e o cheiro de café recém-passado misturava-se ao de terra molhada depois da chuva da noite anterior. As ruas de paralelepípedos ainda estavam vazias, mas cada casa exalava vida: panela batendo, porta rangendo, rádio antigo tocando modinhas sertanejas. Foi nesse cenário, tão corriqueiro e ao mesmo tempo mágico, que dois destinos começaram a se entrelaçar de um jeito que nem mesmo o mais experiente contador de histórias poderia prever.
Gustavo, então com sete anos, surgiu correndo pelo beco atrás da padaria de seu tio, cabelo castanho-claro desgrenhado e joelhos esfolados de aventuras do dia anterior. Trazia nas mãos um estilingue recém-feito com galho de goiabeira e tiras de câmara de bicicleta — orgulho artesanal que ostentava como um troféu. Já exibia, desde cedo, aquele sorriso torto e fanfarrão que faria muito coração bater acelerado no futuro. Enquanto mirava latas empilhadas como se fossem dragões a serem derrubados, não percebeu a menininha sentada num degrau ao lado, abraçando um livro grosso cujas páginas ultrapassavam a largura dos dedos delicados. Era Clara, seis anos, tranças bem-feitas, vestidinho floral que a avó costurara na véspera e olhos cor de mel que refletiam uma quietude incomum para a idade.
O encontro aconteceu quando uma pedra mal-calculada de Gustavo passou raspando pela orelha de Clara, arrancando dela um “ai!” que reverberou no beco estreito. Ele largou o estilingue, engolindo o susto: “Eu… eu não te vi, juro!” Tentou disfarçar o pânico aumentando o volume da voz, mas o rosto corado o traía. Clara, em vez de chorar, levantou-se com calma, sacudiu a barra do vestido e encarou o agressor com surpreendente firmeza. “Você devia prestar atenção antes de atirar”, disse, num tom que combinava bronca e doçura. Depois, como se aquilo fosse conclusão óbvia, ofereceu-lhe o livro para que segurasse. “Segura pra mim enquanto amarro o cadarço?” Gustavo, ainda meio atônito, pegou o tomo pesado — “Contos Maravilhosos”, de Andersen, ilustrado — e sentiu o cheiro de papel antigo misturado ao perfume de talco infantil. Naquele instante, uma faísca invisível acendeu algo entre eles, mais forte que o susto, maior que a diferença de humores.
Nas semanas seguintes, tornar-se-iam inseparáveis. Gustavo, sempre pronto para mais uma traquinagem, descobriu em Clara uma plateia paciente — e às vezes cúmplice relutante — para suas ideias mirabolantes: pescar lambaris sem vara, subir no telhado do coreto para soltar avião de papel ou pregar peças nos vendedores da feira. Clara, por sua vez, introduziu Gustavo a mundos que ele desconhecia: pegava livros na pequena biblioteca municipal, limpava a poeira das capas com o carinho de quem acorda passarinhos e narrava, aos poucos, histórias de princesas corajosas e monstros que guardavam lições. Sentavam-se à sombra da mangueira atrás da escola, onde o barro vermelho tingia as solas dos sapatos, e ela lia em voz alta enquanto ele, fingindo desinteresse, mirava formigas em fila indiana e soltava comentários espirituosos que a faziam rir até a barriga doer. Riso dela: cristal puro. Riso dele: trovão irreverente. Dois sons que se procurariam a vida toda.
Logo veio a grande empreitada da “Casa na Árvore”, na verdade um amontoado irregular de tábuas pregadas sobre um galho baixo. Gustavo insistia em chamá-la de “Forte Secreto dos Aventureiros do Vale”, nome que Clara achava extenso demais, mas aceitava, porque ele brilhava quando pronunciava cada palavra. Passaram tardes recolhendo tábuas descartadas de construções, pregando com martelo emprestado do pai dela, e subornando o irmão mais velho de Gustavo com lanches para conseguir ajuda. Clara pintou na entrada uma placa caprichada: “Proibida a Entrada: Monstros e Adultos”. O lugar tornou-se refúgio contra as tempestades externas e internas que nem sabiam nomear: medos de notas baixas, de castigos injustos, de mudanças que chegariam sem pedir licença. Quando venteava forte, a estrutura rangia, mas eles juravam que era a árvore contando segredos antigos só compreensíveis a quem tivesse coração puro.
Com o tempo, as diferenças entre eles ficaram mais evidentes. Gustavo era elétrico, inquieto, acumularia advertências por mascar chiclete em aula ou por forjar bilhetes de dispensa. Clara preferia o silêncio confortável da sala de artes, onde desenhava estrelas em cantinhos de papel e ganhava elogios da professora por pinturas cheias de nuance. Ainda assim, não se desgrudavam. Quando Gustavo estourava balões cheios de farinha no corredor, Clara estava lá para limpar a bagunça antes que a diretora chegasse. Quando ela precisou apresentar uma maquete sobre o ciclo da água, ele construiu uma engenhoca de potes e mangueiras que fazia chover de verdade — mesmo que metade da apresentação tenha virado uma inundação cômica.
Houve um episódio que consolidou o pacto implícito entre eles. Numa tarde de agosto, Gustavo bancou o herói e subiu no telhado do armazém para resgatar a pipa de um garoto menor. Escorregou nas telhas úmidas e ficou pendurado por segundos eternos antes que Clara, com a rapidez do pânico, acionasse ajuda. O senhor Joaquim, dono do armazém, subiu e puxou o menino de volta, mas exigiu que alguém assumisse o prejuízo das telhas quebradas. Clara, olhos grandes cheios de lealdade, declarou que a ideia fora dela, assumindo culpa que não era sua. O caso quase se transformou em suspensão, mas o pai de Gustavo interveio, prometendo pagar o conserto. Naquela noite, sentados na varanda, ele perguntou por que ela fizera aquilo. “Porque amigos cuidam um do outro”, respondeu, simples assim. Gustavo, que nunca se deixara afetar por sermões, sentiu o coração apertar — algo que não conseguiria explicar nem com piada.
Se por fora Gustavo colecionava medalhas de bagunceiro, por dentro começava a guardar lembranças dela como se fossem botões raros: o jeito que franzia o nariz quando se concentrava, o sorriso que só aparecia quando ele inventava uma palavra nova, a coragem de erguer a voz pra defendê-lo. Clara, ao mesmo tempo, escrevia no diário cor-de-rosa frases que não mostraria a ninguém: “Hoje ele segurou minha mão para atravessar a rua, mas disse que era pra eu não cair. Será que percebeu que eu tremi?” Frases que um dia cresceriam e ganhariam contornos mais profundos — mas por enquanto, eram sementes lançadas em terreno fértil.
Na tarde em que completaram juntos o desafio de atravessar o rio em cima de troncos flutuantes — ideia maluca que quase deu em mergulho gelado —, firmaram promessa solene: jamais iriam se abandonar, acontecesse o que acontecesse. Cortaram o dedo mindinho com espinho de laranjeira e selaram com aperto de mãos, sob o céu laranja de pôr do sol. Clara guardou a fita azul usada para estancar o sangue dele; Gustavo prendeu uma mecha solta do cabelo dela entre as páginas do caderno de histórias. Talvez não compreendessem o peso de tais gestos, mas sentiram, no peito, algo parecido com eternidade.
O ano letivo terminou. Nas férias, passaram cada instante juntos — corrida de carrinho de rolimã pela ladeira da matriz, piquenique com goiabada esfarelando nos dedos, guerra de bexigas d’água que fez a vizinhança reclamar. Entre gargalhadas e broncas, entre quedas e curativos improvisados, aprenderam a ler o mundo pelos olhos um do outro. Para Gustavo, que vivia de impulso em impulso, Clara tornou-se bússola silenciosa. Para ela, mergulhada em livros e sonhos, ele era vento que sacudia páginas, empurrando-a para fora da zona segura. Ninguém perceberia ainda, mas naquele balanço delicado entre razão e aventura se formava o alicerce de um amor que levaria anos para admitir seu próprio nome.
Quando o último dia das férias chegou, sentaram no galho favorito da mangueira e ficaram em silêncio, observando pássaros migrarem em V. Não precisavam preencher o ar com palavras; havia uma música invisível tocando entre eles, composta de lembranças recém-cristalizadas. Antes de se despedirem, Gustavo tirou do bolso uma pedrinha lisa, que encontrara à beira do rio, e entregou a Clara. “Pra você lembrar de mim se eu ficar velho e chato”, brincou, fazendo careta. Ela guardou o presente com um sorriso tão doce que ele sentiu calor subir às bochechas. Se alguém lhes perguntasse sobre o futuro, diriam que seria mais um ciclo de brincadeiras, provas, férias — vida sem sobressaltos. Mal sabiam que, à volta da esquina, adolescência e seus dilemas se agachavam, preparando-se para saltar.
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Atualizado até capítulo 44
Comments
BillyBlizz
Adorando cada detalhe.
2025-06-05
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