O primeiro dia de aula chegou com o céu limpo, como se o temporal tivesse levado embora não só as nuvens, mas também a calmaria das férias. A escola de São Miguel do Vale voltava a se encher de vozes, corredores apressados, cadernos novos e expectativas — algumas boas, outras nem tanto.
Clara, como sempre, já estava sentada na primeira fileira dez minutos antes da aula começar. Caderno impecável, estojo organizado por cor, e uma nova mochila com um chaveirinho de estrela, presente do pai. Gustavo, por sua vez, chegou quando o sinal já estava tocando, com a camisa do uniforme pra fora da calça, o tênis desamarrado e a mochila pendurada em um só ombro.
— “E aí, estudiosa. Já fez o dever do mês?” — brincou ele, sentando na carteira ao lado.
— “Ainda não tem dever, Gustavo. É o primeiro dia.”
— “Por enquanto...” — ele respondeu, rindo.
Ela rolou os olhos, mas estava feliz em tê-lo por perto. O mundo parecia mais completo assim.
Mas com o passar das semanas, algo começou a mudar. A turma foi dividida para atividades diferentes: Clara foi selecionada para o grupo de reforço avançado em matemática, enquanto Gustavo passou a ter aulas de recuperação de leitura. Isso significava menos tempo juntos durante a escola, e mais tempo separados fora dela.
No início, tudo parecia normal. Eles ainda se encontravam no recreio, ainda andavam de bicicleta pelas ruas da vila, ainda planejavam construir um novo projeto (uma “casa na árvore que também fosse barco”, ideia de Gustavo, claro). Mas aos poucos, pequenos sinais começaram a surgir.
— “Você viu que a Clara ganhou medalha na olimpíada de ciências?” — dizia uma colega.
— “O Gustavo tirou 2 de novo... ele nem tenta.” — cochichavam outros.
Gustavo ouvia. Não comentava, mas ouvia. E aquilo doía mais do que admitia. Sentia que, de algum jeito, estava ficando para trás. E, pela primeira vez, começou a se perguntar se ainda pertencia ao mundo de Clara.
Clara, por sua vez, notava o afastamento. Gustavo já não aparecia tanto. Quando ela ia chamá-lo pra estudar, ele inventava desculpas. Quando o encontrava no pátio, estava cercado de outros garotos, rindo alto, empurrando-se, como se não tivesse espaço para ela naquele mundo.
Numa tarde qualquer, Clara passou pela pracinha onde sempre se encontravam. Lá estava ele, sentado no banco de madeira, chutando pedrinhas no chão. Ela se aproximou devagar.
— “Oi.” — disse.
Ele olhou, forçou um sorriso.
— “Oi.”
— “Tá tudo bem?”
— “Tá.”
Silêncio.
Ela sentou ao lado dele, sem falar nada por alguns minutos. Depois tirou da mochila um pedaço de papel dobrado.
— “Lembra da caixa que a gente prometeu guardar segredos?”
Gustavo assentiu, sem olhar diretamente.
— “Esse é o meu.”
Ele abriu o papel. Era um desenho feito à mão: dois bonequinhos em cima de um barco. Um com cabelo preso em trança. Outro de boné virado pra trás. E uma legenda, escrita com letra caprichada:
“Mesmo quando você some, eu ainda te procuro.”
Gustavo engoliu em seco. Depois pegou uma caneta da mochila, rabiscou algo no verso e devolveu a folha a Clara.
Ela virou o papel e leu:
“Mesmo quando eu me escondo, ainda é você que eu quero que me encontre.”
Ela não disse nada. Nem ele. Mas, naquele silêncio, tudo foi entendido. À sua maneira, estavam aprendendo que crescer também era isso: lidar com mudanças, dúvidas, distâncias... e ainda assim continuar escolhendo um ao outro.
A campainha da escola soou ao longe. Os dois se levantaram devagar, e pela primeira vez em semanas, caminharam lado a lado.
E, embora não tivessem prometido nada naquele dia, Clara sabia — e Gustavo também — que o barco deles continuava firme. Talvez não navegando sempre no mesmo ritmo, mas ainda flutuando, guiado por algo que nenhuma tempestade podia afundar.
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Atualizado até capítulo 44
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