Sangue e Obsessão
Acordar era sempre um ato de sobrevivência.
Quando o alarme tocou às 06:30, Ginebra manteve os olhos fechados por mais alguns segundos, como quem deseja barganhar com o mundo. Só mais um minuto. Um minuto em que não precisava encarar os olhares da faculdade, os sussurros, os corredores que a faziam sentir como se estivesse sendo constantemente observada, despida, exposta.
Só mais um minuto sem precisar vestir a armadura de silêncio e apatia.
Quando finalmente se levantou, seus movimentos eram automáticos, quase mecânicos, como se o corpo já soubesse o caminho enquanto a mente se recusava a acompanhá-lo. Banho frio, café amargo, jeans escuros, blusa larga, cabelo preso em um coque apressado que deixava fios rebeldes caírem pelo rosto. No espelho, encarou a garota pálida de olhos fundos e expressão vazia. Uma versão opaca de si mesma.
Havia algo quebrado nela — trincado por dentro — que maquiagem nenhuma escondia. Algo que não podia ser descrito em palavras, mas que gritava nos olhos, no jeito de andar, no cansaço de existir.
O celular vibrou com uma notificação. Era uma mensagem da amiga de turma, Lari:
"Trabalho de História da Arte foi adiado. Aula vai até 22h. Força!"
Ela suspirou pesadamente. Tinha esperanças de sair mais cedo. Caminhar para casa tarde da noite mexia com seus nervos de um jeito que só ela compreendia. Já bastava o que enfrentava nos sonhos — os mesmos pesadelos que voltavam sempre, com precisão cruel.
"Princesinha... você vai gostar."
"Fica quietinha..."
Ginebra apertou os olhos, balançando a cabeça como se pudesse sacudir as lembranças para longe.
Não. Não agora. Não de manhã. Não antes de vestir o rosto neutro.
Saiu para a faculdade em meio à garoa, headphones nos ouvidos, tentando se isolar do mundo através da música. Estudava arte porque acreditava que, através das cores, talvez reencontrasse algo que tivesse perdido. Um pedaço de si. Algo que não conseguia nomear, mas cuja ausência fazia tudo doer.
Mas nem mesmo a arte era suficiente para silenciar os sussurros internos. Eles estavam sempre ali, rastejando pelas bordas da consciência.
Durante a aula, se esforçou para manter o foco. O professor falava sobre simbolismo nas pinturas renascentistas, sobre os segredos escondidos nas pinceladas, mas tudo o que ela via era a mão de Sandro — o monitor da turma — pousando disfarçadamente em seu ombro. O jeito que ele a olhava fazia sua pele se arrepiar de forma errada. Um olhar que não via uma pessoa, mas uma oportunidade.
Um brinquedo.
"Você devia sorrir mais."
"Tão caladinha... deve esconder coisas interessantes."
Às vezes ela imaginava gritar. Jogar tinta vermelha nas paredes da sala, ensanguentar tudo até que todos vissem que ela não era invisível — não era fraca. Fazer com que entendessem, sentissem, que ela não era um objeto decorativo, uma presença muda.
Mas tudo o que fazia era continuar ali, imóvel, como sempre fizera. Sobrevivendo. Fingindo.
Quando o relógio marcou 22h10, pegou sua mochila com pressa. Os corredores já estavam quase vazios, e a chuva engrossava do lado de fora.
O campus parecia deserto.
Mas havia algo errado.
No subterrâneo de Viena, onde o tempo escorria como poeira em criptas esquecidas, Eros despertava com a fome queimando sob a pele. Uma fome densa. Selvagem. Mas não era a sede habitual de sangue que o agitava. Era algo mais antigo. Mais obscuro.
Havia passado décadas evitando a superfície, vivendo à sombra dos conflitos, como um espectro entre mundos. Viajando em silêncio, alimentando-se com discrição. Afastado da guerra entre clãs e facções mágicas. Para o mundo dos vivos, ele estava morto. Para o mundo dos mortos... uma ameaça adormecida. Uma lembrança incômoda de tempos sombrios.
Mas naquela semana, tudo mudara.
Ele sonhava. Pela primeira vez em séculos.
Sempre o mesmo sonho: uma garota caminhando sob a chuva. Olhos assombrados. Um cheiro que o enlouquecia — sangue e dor misturados em um perfume único. Ela sangrava não só pelo corpo, mas pela alma. E isso o chamava. O atraía como uma âncora feita de sombra e luz.
Eros não sonhava. Vampiros da linhagem dele não sonhavam. Aquilo não era mero acaso. Era um chamado.
Subiu à superfície ao cair da noite, o sobretudo negro arrastando-se pelas calçadas úmidas. O ar da cidade estava carregado, como se o próprio destino prendesse a respiração. Seus olhos rubros varriam as ruas com a fome de um predador que há muito esquecera o sabor do inesperado.
Não sabia o que procurava — até sentir o cheiro.
Flor. Sangue. Cinza.
Dor. Alma partida.
Ela estava perto.
Parou. O coração, morto há séculos, quase pulsou.
Estava próximo. Muito próximo.
Ginebra apertava o casaco contra o corpo magro, as mãos geladas. A rua parecia mais escura do que o normal, os postes piscando como se prestes a apagar. As gotas frias da chuva escorriam por seu rosto, misturando-se às lágrimas que ela nem percebia que derramava.
Cada passo soava mais alto do que deveria.
E então, os passos atrás dela.
Ela acelerou.
Os passos também.
O medo, sempre presente, agora se materializava como uma faca cravada entre as costelas. Ela olhou para trás — nada. Mas o instinto gritava.
E antes que pudesse reagir, sentiu o braço ser puxado com brutalidade.
Sandro.
— Você achou que podia ficar me evitando, né? — disse ele, com o hálito quente e fétido roçando seu rosto. — Você me provoca, Ginebra. Você sabe disso.
Ela tentou lutar, empurrá-lo, gritar — mas ele era mais forte. A jogou contra a parede com violência. Um tapa seco cortou seus lábios, e o gosto de sangue invadiu sua boca. Ele a segurava pelos pulsos com uma das mãos, a outra puxando seu cabelo com força.
— Vai ser só um carinho, linda. Depois você vai até gostar.
Ela gritou. Um som desesperado, primal. Mas ninguém respondeu. Só a chuva.
E então, o mundo parou.
Uma presença chegou como uma maré invisível. O ar ficou pesado, sufocante. As sombras se dobraram, como se temessem o que se aproximava.
Sandro virou-se, confuso.
Eros.
Estava ali. Os olhos vermelhos ardiam na escuridão como brasas vivas.
— Solte-a — disse ele. A voz não era apenas som. Era comando. Era uma força que fazia a própria noite estremecer.
— Quem é você, maluco? Vai cuidar da tua vida!
Eros não respondeu. Seus olhos estavam cravados em Ginebra. No sangue escorrendo. No medo.
Ela era pequena. Tão frágil. E mesmo assim... uma tempestade viva.
Avançou num instante, atravessando a distância entre eles como um borrão. Agarrou Sandro pela garganta e o ergueu como se fosse feito de papel.
— Você tocou o que é meu.
— E-eu...! Aghhh!
Um estalo seco. A cabeça de Sandro pendia num ângulo impossível. O corpo caiu.
Silêncio.
Eros voltou-se para Ginebra. Ela estava caída, tremendo, tentando cobrir o corpo com mãos trêmulas. As roupas rasgadas. O sangue nos lábios.
— Você... — ele murmurou, ajoelhando-se. — Você não é comum.
Ela o olhou, os olhos arregalados em pânico. — O que você...?
Mas ele já estava tocando seu rosto com reverência. Limpando o sangue com os dedos frios.
Como se ela fosse algo sagrado.
— Seu cheiro... seu sangue... — os olhos dele se fecharam. — É como um canto antigo. Fogo e flor. Morte e renascimento.
— Não... por favor...
— Não tenha medo. Não de mim. — Mas seus olhos... eram de caçador.
E então ele a abraçou. E mordeu.
A dor foi lancinante. Um corte vivo, ardente. Mas o torpor veio rápido. Um calor anestésico se espalhando. Os pensamentos se dissolveram, os músculos relaxando. Era como morrer... e ao mesmo tempo flutuar.
Eros bebia.
E por um momento, ela se entregou.
Mas então, ele parou. Um rugido. Recuou como se tivesse sido queimado.
— Quase... quase a matei... — sussurrou, com horror nos olhos. — O que é você, mulher?
Ginebra não respondeu. Os olhos semicerrados. O corpo caindo.
Eros a pegou nos braços, o desespero crescendo.
— Não morra. Não agora. Não depois de me encontrar. Você é minha. Agora e sempre.
Eros desapareceu na tempestade com ela nos braços, deixando apenas o corpo inerte de Sandro, o cheiro de sangue e o prenúncio do que ainda estava por vir.
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Atualizado até capítulo 21
Comments
DesAnime Gabi
/Heart//Heart/
2025-05-28
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