A noite parecia mais densa do que qualquer outra.
O céu, carregado de nuvens espessas, parecia sufocar as estrelas, ocultando qualquer vestígio de luz. Havia um peso no ar, como se o próprio mundo pressentisse que algo antigo — e proibido — havia despertado. O vento soprava baixo, arrastando um murmúrio que lembrava orações esquecidas.
Nas profundezas de Ravengar, onde nem a luz do dia ousava se infiltrar, erguia-se uma sala esculpida em pedra negra. As paredes, ásperas e frias, estavam gravadas com runas ancestrais que pareciam se mover quando observadas por tempo demais. No centro, um brasão de ferro escuro fora entalhado no chão, cercado por sete cadeiras de aparência imponente, formando um círculo perfeito. Era o selo do Conselho das Raízes Eternas.
Cada assento estava ocupado por uma figura envolta em sombras espessas, rostos ocultos sob véus, capuzes ou máscaras que mais pareciam rostos petrificados. A presença deles não se media em carne e osso, mas em peso e silêncio. Entre eles, suspensa sobre o vazio, uma esfera de sangue flutuava, pulsando com uma luz carmesim viva, como um coração arrancado que ainda se recusava a morrer.
— O elo foi confirmado — declarou a Matriarca dos Espelhos, a voz cortante e afiada como vidro quebrando. — O sangue da Herdeira corre agora em um laço com o Maldito.
— Eros Sel’Varan... — rosnou o Primus Lycano, olhos âmbar faiscando com fúria. O som que escapou de sua garganta não era humano. — O traidor da Corte Sombria.
— Aquele que recusou todas as alianças — completou o Sumo Bruxo, cujos olhos cegos pareciam enxergar mais do que os demais jamais ousariam compreender.
A Víbora da Linhagem Perdida se inclinou levemente para frente, como se sentisse prazer em cuspir as próximas palavras.
— Pior do que isso. Ele não apenas a marcou. Ele... a tocou com desejo. Ele a possuiu.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quase sólido.
A esfera de sangue estalou, projetando imagens no ar como se a própria vida fosse um espelho líquido. Um quarto iluminado pela penumbra. Dois corpos entrelaçados, pele contra pele. O pescoço da jovem exibia a marca vermelha e crua de uma mordida que não pertencia ao mundo dos homens.
— O Ritual foi selado sem intenção consciente — disse a Matriarca, a voz soando como se fosse feita de lâminas finas. — Mas o elo é real. Sagrado. Antigo.
O vampiro mais velho, com olhos ocos como poços sem fundo, falou num tom baixo e arrastado:
— Ela não sabe o que carrega. A Herdeira da Fenda Rubra. Sangue de bruxa, sangue de um ancestral proibido. O sangue que abre o véu entre os mundos.
— Eros sabe — murmurou a Matriarca, com um sutil traço de desprezo. — Sempre soube.
— Ele deve ser destruído — rosnou o Primus Lycano, cada sílaba carregada de ameaça.
— Não — interrompeu o Sumo Bruxo, e sua voz fez as sombras tremerem. — Ainda não. Há perguntas a serem respondidas... e sangue a ser derramado.
As figuras nas cadeiras se inclinaram levemente, como se as trevas ao redor se aproximassem, famintas.
— Então convoquem os Guardiões Esquecidos — decretou a Matriarca. — Que a caçada comece.
— E que Ginebra Kairen seja trazida viva — completou o Sumo Bruxo.
O Primus Lycano rosnou, mas assentiu.
— O ritual final exige que o coração esteja batendo.
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A manhã não irrompeu de forma viva — ela rastejou.
A luz entrou timidamente, filtrando-se pelas cortinas pesadas como se hesitasse em tocar aquele quarto. Cada raio parecia carregado de poeira dourada, que se depositava sobre a pele nua de Ginebra, aquecendo-a de maneira suave, mas persistente.
Ela despertou com uma sensação estranha, profunda, como se houvesse calor não apenas sob a pele, mas nos ossos. Não era febre — não queimava de doença. Era diferente. Era... presença. Uma percepção constante, um eco que vibrava de dentro para fora, como se agora dividisse o corpo com algo que não era apenas ela.
Quando abriu os olhos, encontrou Eros sentado na beira da cama, observando-a. Não havia sono nele — parecia que não piscava havia horas. Os olhos vermelhos, tão intensos e perigosos na noite anterior, estavam agora mais brandos, quase humanos, mas carregando algo que a fez estremecer.
— Você... me olhou a noite toda? — a voz dela saiu baixa, quase um sussurro desconfiado, enquanto puxava o lençol para cobrir o corpo.
— Não consegui evitar — respondeu ele, num tom que misturava confissão e aviso. — Seu sangue... acalmou algo dentro de mim. E... despertou outra coisa.
Ginebra se ergueu devagar, mas uma vertigem leve a atingiu, obrigando-a a apoiar a mão na cama. Eros se inclinou, amparando-a com um gesto tão cuidadoso que contrastava com tudo o que sabia sobre ele.
— Está acontecendo, não está? Esse elo? — perguntou ela, com o olhar fixo nos dele.
Ele assentiu lentamente.
— Seu corpo está se adaptando. Você não é só humana, Gin. O sangue dentro de você está se rearranjando... reclamando poderes antigos que sempre estiveram adormecidos.
Ela engoliu seco.
— E o que isso significa?
Eros hesitou. O silêncio antes de sua resposta pareceu durar muito mais do que deveria.
— Significa que você vai se tornar mais do que era. Mas... também menos. O Conselho vai vir atrás de você. E de mim.
— Então... estamos marcados? — a voz dela tinha mais aço do que medo.
— Estamos unidos. E, para eles, isso é pior.
Ginebra fechou os olhos, tentando absorver aquilo. Mas então, um estalo na mente a fez arfar. Imagens rápidas, como flashes de um sonho roubado: uma mulher de olhos completamente brancos; uma faca ritualística brilhando sob fogo; uma mesa de pedra manchada.
As mãos dela voaram para a cabeça.
— Eu vi... alguém. Me observando. Como se estivesse dentro da minha mente.
O rosto de Eros perdeu cor.
— Já começou.
— O quê?
— O elo abriu caminhos. Eles podem te sentir agora. Sonhos, pensamentos, sensações... O Conselho está procurando uma brecha. E você... você é uma fenda viva entre dois mundos.
Ela olhou para ele com algo entre raiva e dor.
— Você me salvou naquela noite... mas me condenou também, não foi?
Ele não desviou o olhar.
— Sim. Mas prefiro te condenar ao meu lado do que ver você morrer sozinha.
Sem pedir permissão, ele a puxou contra si. O toque não era só de desejo — havia uma necessidade física, visceral, como se os corações deles pulsassem no mesmo ritmo e isso fosse a única âncora para não se perderem.
Ela deixou o rosto afundar contra o peito dele, ouvindo o silêncio entre uma batida e outra, como se houvesse um terceiro som escondido ali — talvez o chamado daquilo que os unia.
— Então... o que fazemos? — perguntou ela, a voz abafada.
— Fugimos. Nos escondemos. E nos preparamos.
— Para lutar?
Ele baixou o rosto até os olhos deles ficarem no mesmo nível.
— Para sangrar, Gin. Porque isso só está começando.
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O casarão de Eros se erguia nas bordas mais afastadas da cidade, protegido por camadas de magia de contenção e envolto numa névoa tão espessa que parecia se agarrar às paredes como um véu vivo. Durante o dia, o lugar já carregava um peso silencioso; mas, naquela tarde, algo estava diferente. As proteções soavam... enfraquecidas. O ar estava mais denso, vibrando com uma energia que Ginebra não sabia nomear. Até o chão parecia inquieto, como se pulsasse junto com o batimento de um coração invisível.
Ginebra atravessava a biblioteca devagar, cada passo ecoando como se o som fosse engolido pelas paredes. Era como se toda a casa estivesse ciente dela. Livros antigos tremiam levemente em suas prateleiras. Amuletos pendurados em suportes de ferro tilintavam sem vento algum. Algumas capas de couro se contraíam, como se respirassem. Ela sentia... um chamado.
O olhar dela se prendeu a um espelho negro, grande e oval, cuja moldura era feita de osso esculpido com símbolos que ela não reconhecia — mas que, de algum modo, compreendia. A superfície escura parecia absorver toda a luz do ambiente, e, por um instante, Ginebra teve a impressão de que algo se movia dentro dele.
— A casa te reconhece — disse Eros, surgindo em silêncio atrás dela, como se tivesse brotado das próprias sombras. Sua voz soou grave, quase reverente. — Você carrega sangue antigo. Herdeiro. Místico. Quebrado, mas poderoso.
Ela não desviou os olhos do espelho.
— Quem foi minha mãe, Eros?
Ele respirou fundo, como quem se prepara para arrancar um espinho cravado há muito tempo.
— Elira. Uma bruxa da Linha do Luar. Um clã que o Conselho acreditava extinto... até ela. Fugiu quando descobriu estar grávida. Seu nascimento foi considerado uma afronta para as linhagens puras. Por isso... te esconderam dos dois mundos.
Ginebra se virou devagar, o coração acelerado.
— E meu pai?
Eros desviou o olhar, o maxilar tenso.
— Um dhampir, filho de um ancião e de uma humana marcada. Ele desapareceu logo após o seu nascimento. Mas seu sangue... carrega uma maldição e um dom. O sangue da Fenda Rubra.
Ela se aproximou até ficar a poucos centímetros dele.
— E por que você sabe tudo isso?
— Porque fui encarregado de vigiar essa linhagem — respondeu, e havia uma dor oculta por trás das palavras. — Jurei nunca me envolver. Mas quando te vi... quebrei todas as promessas que fiz ao Conselho.
Os olhos dela se estreitaram.
— Você me conhecia antes daquela noite?
Eros assentiu lentamente.
— Eu te buscava. Sonhava com você. Não por desejo... mas por instinto. Algo maior me guiava.
— Então... isso aqui — ela gesticulou entre os dois — já estava escrito?
— Talvez. Ou talvez o destino só precise de um sopro para incendiar tudo.
Ela o puxou pela camisa, os dedos fechados com força.
— Então me promete que, quando o mundo inteiro vier contra mim... você ainda vai escolher queimar comigo?
Eros segurou o rosto dela entre as mãos. Seus olhos, vermelhos e intensos, pareciam conter séculos de decisões ruins e promessas quebradas.
— Ginebra, amor... se o mundo tentar te destruir, eu vou quebrá-lo com os dentes. Um pedaço de cada vez.
Ela sorriu, mas o sorriso não tinha leveza.
— Isso soaria poético... se eu não acreditasse que você é capaz mesmo.
Naquela noite, eles não buscaram prazer, mas abrigo um no outro. Deitaram-se como dois sobreviventes tentando aquecer a própria alma. A pele de Eros se tornou um escudo, e o cheiro dele, um refúgio. Ginebra adormeceu ouvindo o som do coração dele... ou talvez fosse o dela, batendo em uníssono.
O descanso durou pouco.
Ela acordou abruptamente, o corpo rígido e o ar preso nos pulmões. Um grito sufocado ficou preso na garganta. As mãos tremiam. Quando olhou para baixo, percebeu que havia sangue nos dedos — sangue que não era seu.
— Gin! — Eros a segurava, tentando acalmá-la. — Respira. Sou eu.
— Eu... eu vi algo — ela arfava, o rosto pálido. — Era como estar na mente de outra pessoa. Uma sala com paredes de ossos... e alguém me chamando pelo nome. Eles estão vindo. Eles vêm...
Eros a abraçou com mais força, o olhar queimando como brasas vivas.
— Eles abriram a caçada. Sentem seu sangue agora. Querem aquilo que só você pode abrir.
— O véu.
— O acesso entre mundos. O limiar que separa os vivos dos amaldiçoados.
O medo nela era real, mas havia também uma determinação fria começando a nascer.
— O que vamos fazer?
— Nos mover. Deixar este lugar. Procurar aliados. Bruxas renegadas. Lycans exilados. Criaturas que odeiam o Conselho tanto quanto nós.
Ela respirou fundo.
— E se eles me pegarem?
Eros a olhou como quem encara a própria sentença de morte.
— Antes que toquem em você, Gin... terão que atravessar a minha morte.
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A estrada se desenrolava à frente como uma cicatriz aberta sobre as montanhas.
O carro preto de Eros cortava a neblina cerrada, deslizando tão rápido e suave que parecia quase não tocar o chão. As rodas giravam em silêncio, envoltas por feitiços de ocultamento que disfarçavam som, cheiro e até mesmo a presença mágica de quem estava ali dentro. Nem olhos humanos, nem olhos encantados conseguiriam detectá-los.
Ginebra se mantinha com o rosto virado para a janela, vendo o mundo passar como se estivesse se afastando não apenas de um lugar, mas de uma vida inteira. A faculdade, o apartamento pequeno, os cafés corridos antes das aulas, tudo isso agora parecia um sonho distante, irrelevante, frágil demais para existir no mundo em que ela havia caído. Agora, era uma peça num jogo que não entendia completamente, marcada por sangue, desejo e morte.
— Para onde estamos indo? — perguntou ela, a voz quebrando o silêncio. Seus dedos apertavam o couro frio do assento, como se se firmasse em algo sólido antes que tudo voltasse a ruir.
— Para o norte — respondeu Eros sem desviar o olhar da estrada. — Montanhas de Vrala. Existe um homem lá... ou algo parecido com um homem. Um Guardião da linhagem Kairen. Se alguém souber como proteger você do Conselho, será ele.
— Você confia nele? — ela insistiu, tentando ler alguma emoção no rosto dele.
— Não. — Eros soltou um suspiro curto, quase um rosnado. — Mas ele me deve favores de sangue. E dívidas assim não morrem fácil.
O resto da viagem seguiu envolto em um silêncio carregado. A neblina parecia se fechar ao redor do carro, como se a própria montanha não quisesse permitir a passagem. Por horas, não havia nada além de curvas perigosas, árvores retorcidas e o rugido distante do vento cortando as encostas.
Quando a noite já havia caído, eles finalmente avistaram uma estrutura colossal cravada na rocha — uma fortaleza que parecia tão antiga quanto a própria montanha. Runas de proteção estavam entalhadas nas pedras externas, e brasas azuladas queimavam em suportes de ferro, iluminando pouco mais que a própria entrada.
Eros estacionou o carro em silêncio.
— Não importa o que ele diga ou faça — falou, olhando para Ginebra com seriedade. — Fique perto de mim.
Ela apenas assentiu.
Ao atravessarem o portão, a temperatura caiu de forma abrupta. O ar ali dentro tinha um peso diferente, como se fosse mais denso, mais... vivo. A escuridão não era apenas ausência de luz — era algo que observava.
Então, ele surgiu.
Das sombras, emergiu uma figura alta, de presença quase imaterial. Sua pele tinha a cor e a textura de mármore manchado. Os olhos eram prata puro, sem pupilas, brilhando com uma intensidade inquietante. Os cabelos, longos e escuros, caíam até o meio das costas.
— Eros Sel’Varan — disse o homem, e sua voz soou como folhas secas sendo arrastadas pelo vento. — Nunca imaginei que pisaria novamente em meu domínio.
— A ameaça é maior que o nosso rancor, Ezra — respondeu Eros, firme.
Os olhos de prata se moveram, pousando sobre Ginebra. Ezra inclinou levemente a cabeça, estudando-a como se pudesse desmontá-la apenas com o olhar.
— Ela carrega o Selo. Maldição e milagre na mesma carne. A Herdeira... vive.
— E precisa de respostas — disse Eros, sem hesitar. — Precisa saber o que o Conselho fará... e como impedir.
Ezra avançou até ela, seus passos quase sem som. Quando ergueu a mão, Ginebra instintivamente quis recuar — mas forçou-se a ficar firme. Seus dedos gelados tocaram a testa dela, e um jorro de energia percorreu o ar, tão forte que as tochas na parede tremularam.
As visões vieram como uma tempestade:
Uma floresta em chamas.
Uma criança envolta em luz.
Um círculo de runas sendo quebrado por mãos ensanguentadas.
Gritos, e mais sangue, escorrendo por sulcos no chão.
Ezra arfou e recuou, como se tivesse sido queimado.
— Ela é mais do que eu esperava... A junção das três linhagens esquecidas. Vampiro. Bruxa. Dhampir. Um equilíbrio impossível. É por isso que o Conselho a teme. Porque ela não pertence a lado algum — e por isso pode destruir todos.
— Como? — a voz de Eros era uma lâmina embainhada, prestes a ser usada.
Ezra o encarou, e havia algo sombrio em seu olhar.
— Se ela abrir a Fenda Rubra, o véu entre mundos se rasgará. Criaturas esquecidas retornarão. E a Mãe da Noite despertará.
Ginebra sentiu o estômago afundar.
— E se eu não quiser abrir nada?
Ezra suspirou como quem lamenta uma verdade inevitável.
— Não será uma escolha. O elo foi feito. Você sangra magia agora. Um dia, o véu virá até você... e exigirá passagem.
Eros deu um passo à frente.
— Então como evitamos isso?
— Unam-se. De verdade. Não apenas em corpo ou sangue. Façam o ritual antigo. Unam alma e essência. Se ela tiver uma âncora, o véu não poderá tomá-la.
Ginebra olhou para Eros, o coração disparado.
— Você faria isso? Ligaria sua alma à minha?
Eros se aproximou, e a intensidade no olhar dele fez o ar entre eles parecer vibrar.
— Já estou ligado, Gin. Só faltam as palavras certas para tornar isso eterno.
Ezra os observava com um misto de fascínio e melancolia.
— Mas saibam: se fizerem isso, se tornarem um... e ela cair... você cairá também, Eros. O elo não permitirá que vivam separados. A morte de um será a ruína do outro.
Houve um silêncio pesado.
Eros quebrou-o sem hesitar:
— Eu já morri uma vez. Quando a vi naquela calçada, machucada e sozinha. O que vier depois disso... é só consequência.
Naquela noite, enquanto a tempestade rugia sobre a fortaleza, Eros e Ginebra dormiram juntos — mas não em carne. Em alma. Seus sonhos se entrelaçaram, memórias se confundiram, e feridas antigas queimaram como se fossem novas.
E, longe dali, nas profundezas de Ravengar, o Conselho fazia seu primeiro movimento real.
Um assassino havia sido convocado.
Um dhampir renegado.
Um caçador de elos.
E seu próximo destino...
Era o norte.
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Atualizado até capítulo 21
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