Ginebra acordou no meio da noite com o gosto de ferrugem na boca. Estava suando, o coração batendo como um tambor frenético. A fortaleza parecia escura demais, como se as paredes tivessem absorvido seus gritos.
Eros estava ao seu lado num instante.
— Pesadelo?
Ela tentou responder, mas a garganta apertou. Lágrimas quentes começaram a cair sem controle. Ele não disse nada, apenas a envolveu com os braços, puxando-a para o peito.
— Foi… o quarto — sussurrou ela, como se as palavras tivessem gosto de dor. — O quarto com as paredes azuis.
Eros ficou em silêncio, esperando que ela continuasse no próprio tempo.
— A casa onde fui criada… depois do orfanato. Eu tinha oito anos quando aquela mulher me levou. Disse que me daria um lar. Mas era só um teatro. Eu era um peso, uma moeda de troca. E ele… o filho dela…
As palavras vieram como navalhas.
— Ele entrava no meu quarto à noite. Nunca contaram. Nunca ouviram. Ou fingiam não ouvir. Me chamava de "presente"... me dizia que ninguém ligaria se eu desaparecesse. Disse que me faria mulher e sujou minha alma...
Eros fechou os olhos rangendo os dentes, os braços apertando Ginebra com mais força, como se pudesse costurar suas feridas com o próprio corpo.
— Um dia, eu fugi. Com uma faca enferrujada. Cortei ele no rosto. Corri. Vivi nas ruas por dois anos. Roubei, dormi em becos… fui agredida, quase morta. Até que me prenderam em um lar de garotas órfãs e me fizeram terminar o colegial, entrei na faculdade com uma bolsa de caridade e ganhei ate um dormitório . Achei que estava livre. Mas a sujeira me segue. Me marca.
Eros segurou seu rosto com uma delicadeza feroz.
— Você não é a sujeira, Ginebra. Você é o fogo que sobreviveu. Eles… aqueles que te feriram… não merecem sequer dizer seu nome. Mas me diga, Gin. Me diga quem foi o bastardo.
Ela hesitou, os olhos arregalados.
— Por quê?
— Porque ninguém toca na minha mulher e respira sem pagar por isso. Eu não sou um herói, amor. Eu sou a ruína. E esse desgraçado vai aprender o gosto da própria língua quando eu a arrancar.
Ela o encarou, surpresa com a fúria crua em sua voz.
— Você me chama de sua… mas sabe o que isso significa?
— Significa que o sangue, a alma, o que sobrou do meu coração podre… tudo te pertence. Significa que vou caçar fantasmas por você. E quebrar o mundo se ele tentar te quebrar de novo.
Ela chorou mais uma vez. Mas não de dor.
Dessa vez, foi alívio.
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A presença dele era como um eclipse.
O assassino caminhava pelos campos congelados ao redor da fortaleza. Seus olhos, negros como poços sem fundo, brilhavam sob a lua. O dhampir não usava nome. Era conhecido apenas como Varn, o Devastador de Laços. Seu dom era cortar vínculos místicos, absorver as energias de elos proibidos. Sua pele carregava as cicatrizes de cada vida que ceifou. Cada marca era uma alma despedaçada.
E agora, ele queria Ginebra.
Dentro da fortaleza, Ezra colocava objetos sobre o chão de pedra: cristais de obsidiana, frascos de sangue, brasas encantadas. Eros observava tudo com os olhos tensos, a mão segurando a de Ginebra.
— Esse ritual não é leve — murmurou Ezra. — Quando as almas se entrelaçam, tudo o que vocês são será exposto. Não poderão mentir um para o outro. Não poderão esconder segredos. Se ela o odiar por um instante… o elo ruirá.
Eros olhou para Ginebra. Ela respirava rápido, mas firme.
— Eu já vi o pior dele — disse ela. — E ainda assim... o escolho.
Ezra assentiu e começou os encantamentos.
Enquanto isso, Varn escalava os penhascos da fortaleza como uma sombra viva. Ele podia sentir o calor do elo se formando. Cada vez que Ginebra e Eros trocavam um olhar, o laço entre eles pulsava como uma ferida aberta — chamando, gritando.
Ele sorriu.
Fácil.
No interior do círculo mágico, Ginebra foi banhada em luz rubra. Seu corpo flutuava levemente, os olhos entreabertos.
— Eros — sussurrou ela. — Se algo der errado…
— Não vai — respondeu ele, entrando no círculo ao lado dela. — Porque somos um. Já éramos antes mesmo de saber.
Ezra ergueu uma lâmina cerimonial.
— Sangue por sangue. Alma por alma. Que o elo se forme sob a Lua da Morte.
A lâmina cortou as palmas dos dois. O sangue escorreu, se misturando no chão encantado. A fortaleza inteira estremeceu.
E foi nesse instante que Varn irrompeu pelas paredes como um demônio ancestral.
O círculo se quebrou.
Ezra foi lançado contra a parede.
Eros instintivamente se colocou na frente de Ginebra, os olhos queimando em rubi.
— Saia do caminho, Sel’Varan — disse Varn. — Ela não é sua.
— Ela é minha desde o primeiro batimento que compartilhei com ela.
Varn riu.
— Então morra com ela.
E atacou.
O combate foi como um terremoto. Eros usava magia antiga, a força dos vampiros primordiais. Varn, no entanto, era um predador moldado para destruir vínculos. Cada golpe seu cortava a energia ao redor, enfraquecendo o elo em formação.
Ginebra se arrastou até o círculo destruído, sentindo o sangue ainda vibrando nas runas.
— Ezra! Preciso terminar!
O velho Guardião, ferido, murmurou com dificuldade:
— Ofereça o que ele nunca poderia destruir… seu nome verdadeiro.
Ela hesitou. Era algo que nunca havia pronunciado. Um nome esquecido, sagrado, herdado de sua mãe.
Mas então ela gritou:
— Elira’Nae!
O chão brilhou. O círculo reacendeu.
Eros e Varn pararam por um segundo. O ar estalou. Um trovão explodiu nos céus.
Ginebra flutuou. Seu corpo foi banhado em chamas prateadas.
Ela ergueu a mão.
— Basta.
A voz não era só dela. Era da linhagem. Do poder esquecido.
Ela lançou Varn para longe com um simples gesto. O assassino caiu, sangrando, e desapareceu na fumaça — vivo, mas ferido.
O ritual se completou. O elo estava selado.
Eros caiu de joelhos. Ginebra correu até ele.
— Você está comigo agora — sussurrou ela. — E eu com você.
Ele a puxou para perto, os olhos ainda ardendo.
— Agora ninguém mais pode te tomar. Nem mesmo o destino.
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Muito além das montanhas, em um salão forjado em obsidiana viva, o Conselho sentiu o impacto.
Runas começaram a sangrar. Espelhos estilhaçaram-se por dentro. A Guardiã das Linhagens, uma bruxa cega com véus de prata cobrindo os olhos, estremeceu em sua torre.
— O Elo se completou — murmurou. — Eles ousaram.
O Arqui-Vampiro se ergueu de seu trono de ossos.
— Enviamos Varn. Ele não retornou.
— Ainda não… — disse outro. — Mas ele voltará. Com ódio novo. Com fome.
Silêncio caiu no salão, tenso como lâmina.
— Preparem a Purga — ordenou o líder. — Se não podemos desfazer o elo, destruiremos ambos.
Na fortaleza, o chão ainda vibrava sob o eco do ritual. A fumaça dançava em padrões circulares, como se comemorasse. Ezra tossia sangue, mas sorria.
— Nunca pensei que viveria para ver um Elo como esse… — murmurou.
Eros carregava Ginebra em seus braços. Ela estava pálida, os olhos semiabertos, mas viva. Conectada. Uma extensão dele.
Ele a levou até um dos aposentos mais antigos da fortaleza — um quarto de pedra com tapeçarias encantadas, com uma lareira sempre acesa e o aroma de ervas de cura no ar.
Ele a deitou na cama com cuidado, afastando os cabelos de sua testa suada.
— Está doendo? — perguntou ele, a voz rouca.
Ela abriu um pequeno sorriso.
— Estranhamente, não. Só... quente. Como se algo tivesse acendido por dentro.
Eros apertou sua mão.
— Está tudo bem agora, Gin. Você está segura.
Ela encarou seus olhos. Um novo brilho dançava ali — uma intimidade que não precisava de palavras.
— Você viu tudo de mim, Eros… — sussurrou. — Até as partes quebradas.
— E amei todas — ele respondeu sem hesitação.
Ela respirou fundo, então deitou a cabeça em seu peito.
— O Conselho vai vir.
— Eu sei.
— Eles vão tentar nos destruir.
— Vão falhar — disse ele, com uma convicção que parecia forjar metal no ar.
Na manhã seguinte, o céu estava escuro, como se sentisse o peso do que acontecera.
Ezra os encontrou na biblioteca da fortaleza, onde Ginebra estudava os símbolos deixados pela linhagem Kairen. Ela estava diferente — mais firme, mais presente. Como se o elo tivesse costurado partes esquecidas de sua alma.
— O que vem agora? — perguntou ela.
Ezra a observou.
— Varn não vai parar. O Conselho agora teme, sim. Mas também odeia. Eles não permitirão que um elo como o de vocês exista. A existência de vocês desafia séculos de controle.
Eros se aproximou, ficando atrás de Ginebra, as mãos em seus ombros.
— Então vamos lutar. Juntos.
Ezra assentiu.
— Mas não será só com força. Precisam das verdades. Da linhagem. Do que Ginebra é... e do que ainda pode se tornar.
Ela olhou para os pergaminhos antigos diante dela.
— Quem eu sou, Ezra?
— Uma herdeira, mas também uma ponte. Entre raças. Entre mundos. Você pode trazer equilíbrio. Ou caos. O véu sussurra seu nome agora. E um dia... ele vai tentar atravessar.
Ginebra sentiu um frio subir pela espinha.
Eros apertou seus ombros.
— Quando esse dia chegar, não estará sozinha.
Ela olhou para ele, e seu coração, pela primeira vez em anos, não sentia medo.
Sentia poder.
Na noite seguinte, Eros a levou para fora da fortaleza. A lua cheia refletia sobre o lago negro como vidro.
— Quero te mostrar algo — disse ele.
No centro da água, um círculo de pedras flutuava. Ele pisou ali como se o tempo não o tocasse. Estendeu a mão.
Ela aceitou.
— Aqui… é onde jurei nunca me ligar a ninguém — murmurou ele. — Onde prometi ser eterno, sozinho. Hoje, quebro essa promessa por você.
— E eu quebro a minha — respondeu ela. — Jurei nunca confiar em ninguém. Nunca me entregar. Mas aqui estou.
Ele a puxou para si. O beijo foi lento, cheio de promessas. De verdades. De redenção.
E enquanto eles se uniam sob o luar — não apenas pelo sangue ou o ritual, mas pela escolha — Varn abria os olhos em uma caverna escura, cercado por feitiços negros.
Ele sorriu com dentes quebrados.
— Vamos brincar mais, Ginebra… Agora que eu conheço o gosto do seu elo, vou arrancá-lo com minhas próprias mãos.
E o Conselho? O Conselho começava a mover seus peões.
A guerra estava apenas começando.
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Atualizado até capítulo 21
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