Acordei às cinco.
Como sempre.
O silêncio da casa antes do caos era a única coisa que me lembrava que eu ainda tinha algum controle sobre algo. Coloquei a camisa, desci pelas escadas como uma sombra e segui para a cozinha. Café. Era tudo o que eu queria.
Mas o que encontrei...
Ela.
Sentada em cima da bancada. De pijama. Um short que não era exatamente um short, e uma blusa de algodão com estampa de um pato deprimido dizendo “segundas-feiras me matam”.
— Bom dia, noivinho — disse, com a boca cheia de Nutella e uma colher de pau na mão. — Tá cedo pra seu rosto de enterro.
— Você está usando minha caneca. — Apontei a caneca preta com o brasão da família estampado.
— Ela me escolheu. Me chamou baixinho da prateleira. Tava com saudade de ser usada por alguém com mais emoção que um iceberg.
A mulher tinha resposta pra tudo. E pernas demais à mostra.
Tentei ignorar.
Falhei miseravelmente.
— Você costuma andar assim pela casa?
— Assim como?
— Sem... dignidade.
Ela arqueou uma sobrancelha, pulando da bancada com a colher ainda na boca.
— Ah, claro. Porque andar pela casa às cinco da manhã maquiada, de salto e com cara de "mato gente antes do café" é o padrão Vólkov de decência.
Ela passou por mim e, de propósito — de propósito — esbarrou no meu ombro.
— Relaxa, soldadinho. Ainda não estou tentando te seduzir.
— Ótimo.
— Mas se eu estivesse... — virou-se no meio do corredor, de costas, com um sorriso maldito — você cairia direitinho.
Não respondi.
Porque ela tinha razão.
E porque minha vontade de beijá-la contra a geladeira foi tão real que me assustou.
Ela sumiu pela escada e deixou o cheiro dela no ar. Lavanda e pecado.
Sentei na cadeira.
A casa ainda dormia.
Mas eu...
Eu estava oficialmente acordado. E fodido.
Naquele dia, me tranquei no escritório. Fingi ter conferências por horas. Até almocei em silêncio com Elena, o que por si só deveria ser considerado um castigo divino.
Mas à noite...
O destino — ou a ironia — me lembrou que fugir dela era como tentar impedir um furacão com fita adesiva.
O jantar com os aliados da velha guarda seria uma noite de discursos sóbrios, mãos apertadas com tensão velada, e taças erguidas em nome da paz que todos sabiam que custaria sangue. Eu vesti meu terno mais escuro, escolhi o relógio de Dante e o olhar mais neutro que conseguia manter.
Mas então ela entrou.
E todo o resto perdeu a cor.
Yarin.
Com um vestido vinho escuro colado no corpo como se tivesse sido desenhado diretamente sobre a pele. Um batom mais ousado que qualquer cláusula do tratado. Cabelos soltos, riso afiado.
Ela era uma rebelião com salto alto.
— Senhoras e senhores — anunciou ao entrar no salão — relaxem. Ainda não decidi fugir pela janela. Mas mantenham as portas trancadas. Vai que...
Alguns riram. Outros tossiram em desconforto.
Eu quis arrancar os olhos dos presentes.
Ela foi cumprimentando um a um, sorrindo, ouvindo, reagindo com naturalidade desconcertante. Fez piadas com Armandi, o ex-chefe da segurança de meu pai. Brindou com a Marquesa Del Fiore — uma senhora que não ria desde a queda da União Soviética. E ainda arrancou uma risada do cardeal que era mais pedra do que padre.
— Você é um problema — murmurei ao lado dela, no momento em que nos sentamos à mesa.
— E você é tão romântico — sussurrou de volta. — Vai me escrever um poema ou só vai continuar me olhando como se eu fosse um carro desgovernado?
— Você é pior. Carros desgovernados pelo menos têm freio.
Ela sorriu e virou-se para o Ministro Russo ao lado, que mal falava italiano. Em cinco minutos, estavam gargalhando. Yarin usando expressões em russo que claramente aprendeu naquela tarde com Lorenzo. Improvisando. Encantando.
E eu?
Eu só observava.
Em silêncio.
Cada gesto, cada olhar que ela dava para outros. Cada riso que ela provocava em homens que eu não confiaria nem para regar uma planta.
— Está tudo bem, irmão? — perguntou Caius, do outro lado da mesa, notando minha expressão.
— Perfeitamente. — Bebi o vinho como se pudesse apagar o incêndio que crescia por dentro.
Porque Yarin era exatamente o que eu não queria.
E exatamente o que eu não conseguia ignorar
O jantar terminou, graças a Deus, antes que eu cometesse um crime por ciúmes.
Eu me retirei para o salão de charutos com alguns homens da mesa. Negócios, como sempre. Armandi, o velho assessor, discorria sobre as rotas da Sicília como se narrasse uma ópera. E eu fingia ouvir — até que o som inconfundível de um estrondo de vidro e um grito feminino ecoou do hall principal.
Meu coração gelou.
“Por favor, não seja ela.”
Caminhei rápido pelos corredores da mansão. Passei por criados correndo e convidados com olhos arregalados.
E então vi.
Yarin.
Sentada no chão. Coberta de penas. Com um abajur quebrado aos seus pés, uma das cortinas da entrada embolada no braço e um vaso caríssimo virado ao lado dela.
Rindo.
— Você caiu da escada? — perguntei, travando os dentes.
— Não! — ela respondeu ofendida. — Eu voei com estilo. E, por um momento, fui uma princesa vitoriana escapando do tédio.
Armandi pigarreou atrás de mim, tentando esconder o riso.
— A senhorita está... bem?
— Só minha dignidade morreu. O resto sobreviveu. Ah, e o abajur, coitado.
Ela se levantou com a ajuda de um dos empregados e ainda soprou uma pena que caía do cabelo.
— Olha, Leonardo — disse, ajeitando o vestido com naturalidade inaceitável — se quiser me punir, eu entendo. Mas, honestamente, a culpa é toda daquelas cortinas. Elas estavam me encarando com um ar julgador desde que cheguei.
— Yarin...
— Sim?
— Da próxima vez que quiser encenar a morte de Lady Macbeth, avisa. Eu providencio um palco.
Ela sorriu, jogando o cabelo para trás como se estivesse em um comercial de shampoo e não no meio de uma tragédia doméstica.
— Mas que graça teria, meu Don, se eu não te pegasse desprevenido?
E, mais uma vez, ela virou as costas e foi embora.
Me deixando com um tapete coberto de penas, uma sala em silêncio e meia dúzia de mafiosos com cara de quem queria rir — mas sabia que eu atirava em quem ria.
Maldita seja essa mulher.
Ela não está apenas invadindo minha casa.
Está invadindo minha paz.
E o problema é que... parte de mim está adorando cada segundo.
Bati na porta uma vez.
Não esperei resposta.
Ela não espera por nada, por que eu esperaria?
Abri a porta e encontrei o caos.
Meias espalhadas. Livros abertos. Uma garrafa de vinho meio vazia ao lado de um pote de sorvete. No meio da cama, de pijama de panda e cabelo preso com um lápis, estava Yarin, gargalhando sozinha assistindo um vídeo no celular.
— Não sabia que mafiosos batiam antes de invadir quartos, Vólkov. Estou emocionada.
— Estou aqui pra conversar. — Cruel ilusão da minha parte.
— Conversar? — Ela deu um gole direto da garrafa de vinho. — Vai ser interrogatório ou confissão?
— Você precisa se comportar. Isso não é um convento, mas também não é um circo.
— Interessante. Porque as pessoas vestidas no jantar pareciam palhaços com grife.
— Yarin.
Ela largou o celular e me olhou de verdade. Sem piada.
— Você está com raiva porque eu roubei a cena, ou porque os velhos mafiosos sorriram pra mim mais do que pra você?
— Estou com raiva porque você é imprevisível.
— E você é previsivelmente entediante.
Silêncio.
A tensão pairou como fumaça. E havia algo no olhar dela... algo diferente.
— Sabe, Leo — disse baixinho — você age como se não tivesse sangue nas veias. Mas eu aposto que se alguém te beijasse do jeito certo, você explodiria que nem seu pai no porão da mansão.
Ela se levantou, devagar, vindo na minha direção. Parou à minha frente.
— E isso te assusta, não assusta? — sussurrou, encarando minha boca. — Ser controlado por alguém que você não consegue prever.
— Eu não sou controlado. — Menti. Maldito seja meu próprio pulso.
Ela sorriu.
— Por enquanto.
E então, no gesto mais absurdo possível, me ofereceu a colher do sorvete.
— Quer um pouco? É de pistache. Eu sei que você tem cara de que odeia qualquer sabor com emoção.
Peguei a colher.
Dei uma mordida.
Ela riu.
E, por um segundo — só um segundo — me permiti rir junto.
Maldição.
A mulher estava começando a abrir rachaduras no que restava da minha couraça.
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Atualizado até capítulo 32
Comments
Bell Belmonte
Yarin é uma tempestade, adorando
2025-07-16
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Adriane Alvarenga
Eita o Don está louco por ela....kkkkkk
2025-07-15
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Ely Ana Canto
ela já está deixando ele de 4 kkkkkk
2025-07-15
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