Acidente ou incidente?

A noite foi longa, repleta de danças que não desejei, sorrisos que não me pertenciam e promessas que não fiz. Quando por fim me permitiram recolher-me, o silêncio dos corredores foi um alívio. Mas nem mesmo o peso do cansaço trouxe descanso.

Fechei os olhos… e sonhei com olhos dourados à meia-luz, com mãos que não me tocavam, mas ainda assim deixavam minha pele em chamas. Com uma voz grave que sussurrava meu nome como se fosse pecado.

Acordei antes do sol.

Vesti as roupas mais simples que me foram permitidas. Prendi os cabelos com uma fita escura. E parti em direção aos estábulos e ao campo de treino, onde, segundo meu pai, eu teria um instrutor à altura. Um cavaleiro estrangeiro — “respeitado, disciplinado, e discreto”. Palavras dele.

Não esperei muito. A névoa ainda tocava a grama quando ouvi passos firmes se aproximando no cascalho.

Levantei o rosto.

E lá estava ele.

Não mais à sombra.

Os cabelos, negros como a noite mais silenciosa, caíam de forma desordenada sobre sua testa — despenteados, sim, mas de uma beleza quase cruel. Havia algo naquele desalinho que não era desleixo, mas liberdade. Como se ninguém jamais tivesse ousado impor ordem a ele.

Seu rosto…

Não há palavras precisas. Não era apenas belo — era inquietante. Um traço entre o nobre e o selvagem. Os ossos bem marcados, a mandíbula forte, os olhos fundos como se guardassem memórias que nenhum homem deveria carregar. E havia aquela expressão — serena, mas carregada de presságios. Como uma estátua antiga, esculpida por mãos que conheceram tanto o amor quanto a tragédia.

Era o tipo de rosto que não se olha apenas — se sente. Como o frio antes da tempestade.

Mas ele não sorriu. Nem saudou com formalidade.

— Pensava que viria atrasada — disse apenas, como se me conhecesse melhor do que deveria.

— Pensava que não viria — respondi, com o coração batendo tão alto que temi que ele o ouvisse.

Um silêncio pesado se instalou entre nós.

— Seu pai me pediu para treiná-la — ele continuou. — Mas devo lhe perguntar: está disposta a aprender… ou veio apenas brincar de ser forte?

Senti a provocação em sua voz. Não era um insulto. Era um teste.

— Estou disposta — disse, erguendo o queixo. — Mais do que imagina.

Por um instante, algo cintilou em seus olhos. Não era aprovação. Era algo a mais.. Como se ele já soubesse o que meu desejo de força me custaria.

— Muito bem — disse ele, caminhando até as armas dispostas no cavalete. — Mas cuidado, milady. Força não se conquista sem deixar marcas.

Entregou-me uma espada curta.

Seus dedos roçaram os meus.

E o mundo, por um instante, parou de girar.

Volto para o castelo escoltada por dois guardas. Meus músculos ardem, os dedos ainda formigam do treino, e mesmo assim… há um certo calor em meu peito. Um misto de exaustão e algo que não ouso nomear.

As grandes portas do castelo se abrem com um ranger antigo. O cheiro de pedra, madeira e brasas me recebe como um manto. E então, antes que eu possa dar mais um passo, ouço os risos. Pequenos, rápidos, como passos miúdos no mármore.

As crianças.

Sinto meu rosto suavizar antes mesmo de vê-las.

Eles correm pelo corredor, desajeitados, cheios de pressa e alegria.

— Irmã! — grita Ael, com os cabelos desgrenhados e olhos brilhantes.

Não há tempo para formalidades. Em segundos, braços miúdos me envolvem, alguns pelas pernas, outros pela cintura. Risos, vozes sobrepostas, perguntas sem pausa.

— Trouxe doces?

— Onde estava?

— Vai ficar desta vez?

Me abaixo, rodeada por eles. Meus dedos acariciam seus cabelos, toco seus rostos como se quisesse lembrar de cada traço.

— Faz tempo que não os vejo — digo, mais para mim do que para eles.

— A senhora anda muito ocupada com festas — diz Jude, com olhar sério demais para sua idade.

Sorrio. Um sorriso de verdade, daqueles que há muito não nascia.

— Eu prometo que hoje fico. Até o jantar. Depois… bem, depois vocês terão que dormir cedo ou seus monstros noturnos virão buscá-los.

— Monstros não nos assustam — diz Astence, estufando o peito.

— Ah, não? — brinco. — Pois ouvi dizer que um deles se esconde nos jardins. E que ele adora crianças corajosas...

Eles riem, se empurram, e voltam a correr pelos corredores, como um bando de loucos livres. Fico ali, observando, sentindo o silêncio após suas risadas como um eco quente dentro do peito.

Logo vejo pelo corredor uma silhueta familiar, esguia e elegante como a lâmina de uma adaga. Ártemis.

Minha irmã gêmea.

Mesmo espelhando meu rosto, há algo nela que sempre pareceu mais contido, mais controlado — como se escondesse emoções onde eu as deixava escapar.

— Estava com saudades — digo, abrindo os braços.

Ela se aproxima e me abraça com firmeza, o tipo de abraço que não precisa de palavras, mas carrega nelas todo o tempo distante. Sinto seu perfume de lavanda e ferro, o mesmo de nossa infância nas muralhas.

Mas ela logo se afasta o suficiente para me olhar com aquele ar prático e objetivo que tanto a define.

— Está atrasada — diz, ajeitando um fio do meu cabelo preso pela fita escura. — Precisa se arrumar. Seu pretendente, o Lorde Emris, está esperando para a visita formal. Você se esqueceu?

A lembrança pesa em mim como uma pedra.

— Não me esqueci — minto, com o cansaço ainda colado à pele.

— Ele trouxe presentes. E seu pai está contando com sua delicadeza — continua ela, seca, mas não cruel. — Talvez, se fizer tudo certo, ele finalmente permita que você treine mais vezes fora dos muros. Com liberdade.

O nome de Emris soa distante. Como se fosse de outro tempo. Outro mundo.

Não digo nada. Apenas suspiro e caminho ao lado dela.

— Você gosta dele? — Ártemis pergunta, baixando a voz, quase como se quisesse me proteger da resposta.

Demoro a responder.

— Eu… não o detesto.

Ela sorri de lado.

Mas me parece falso.. Deixo isso de lado.

— Um começo honesto. Para alguém que nunca soube fingir muito bem.

Seguimos pelos corredores. O som dos nossos passos ecoa como um lembrete constante de tudo o que me espera. Aparências, promessas veladas, olhares cheios de intenção.

E em minha mente, paira outra sombra — um par de olhos escuros como pecado, e a lembrança do toque de uma lâmina entregue por dedos que não temem

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