Capítulo 5 A Voz que Nunca Cala

A Voz Que Não Cala

Clara acordou com um frio cortante rasgando sua pele e o gosto metálico do sangue em sua boca. O chão sob ela ainda era de pedra úmida, mas a iluminação avermelhada havia desaparecido, deixando apenas a lanterna caída ao seu lado, agora sem energia. A sala estava escura, mas não silenciosa. O som de uma respiração baixa e contínua ecoava pelas paredes, como se as próprias pedras respirassem ao seu redor.

Ela tentou se levantar, sentindo o corpo dolorido e a cabeça latejando. Seus dedos tremiam enquanto buscavam o gravador, que ainda repousava ao lado do altar. Quando o pegou, a tela tremulou e uma nova gravação apareceu com o título: “Intercâmbio”.

Clara não se lembrava de ter ativado o dispositivo. Ela pressionou o botão de reprodução, e então, uma voz diferente da sua encheu a sala — uma voz jovem, feminina, mas rouca, como se viesse de dentro de um poço.

— "O que é dito não pode ser desdito. O que é ouvido, agora vive em você."

O silêncio seguinte foi esmagador.

Determinada a sair dali, Clara se arrastou até a porta de ferro. Para sua surpresa, ela estava entreaberta. O corredor externo, embora ainda escuro, parecia menos sufocante. Com passos vacilantes, ela percorreu o labirinto subterrâneo, guiando-se por marcas de carvão nas paredes — setas feitas às pressas, talvez por outros que tentaram escapar antes.

Ao subir de volta para o porão do hospital, o ar parecia mais pesado. A sensação de que algo havia sido deixado para trás — ou libertado — a consumia. Ao alcançar o andar principal, Clara percebeu que não estava mais sozinha.

Pelo corredor à sua frente, uma sombra correu. Rápida. Esvoaçante. Clara congelou.

Ela não queria seguir, mas seu instinto de jornalista era mais forte do que o medo. Avançou lentamente, os olhos tentando se adaptar à pouca luz que vinha pelas janelas empoeiradas. Chegou ao antigo auditório do hospital. As cadeiras estavam cobertas por lençóis brancos, agora manchados pelo tempo.

No palco, havia algo novo.

Uma cadeira. E sobre ela, uma fita cassete com seu nome: CLARA.

Ao lado, um gravador portátil. Tremendo, ela pressionou o play.

— “Você ouviu... agora precisa contar. Eles querem ser lembrados. Eles querem ser ouvidos. Uma vez aberta, a porta não fecha.”

A fita parou com um clique seco. Então, a cortina do palco se moveu com o vento inexistente. Clara se aproximou e puxou o pano. Atrás, um espelho rachado revelava uma figura que não era a sua. A menina de vestido branco, sem olhos, com os cabelos escorridos e pele pálida a observava do outro lado. Quando Clara recuou, a imagem se manteve, imóvel, como uma pintura macabra.

O gravador ligou sozinho outra vez. Desta vez, a voz era masculina:

— “Se quer saber a verdade, siga a trilha do silêncio. Onde nada se ouve, tudo se revela.”

Clara reconheceu o tom. Era a voz do Dr. Reinhardt, um dos sete nomes do altar.

Revirando suas anotações, ela encontrou a referência a um local nos mapas que antes havia ignorado: o “Bloco E – Zona de Isolamento Acústico”. Era um setor construído para pacientes cujo sofrimento psicológico provocava distúrbios sonoros extremos. O local fora selado após uma série de suicídios inexplicáveis entre os funcionários.

Ela precisava ir até lá.

Armada com uma lanterna reserva e seu celular em modo gravação, Clara atravessou os corredores agora mais escuros do que nunca. Os ruídos do hospital pareciam mais vivos — portas rangendo, passos ao longe, sussurros entre as paredes. A própria estrutura parecia murmurar seu nome.

Ao chegar ao Bloco E, encontrou a porta de aço lacrada com tábuas e correntes. Uma inscrição em giz quase apagada lia-se:

"Aqui, o som morre. Mas a dor canta."

Forçando a entrada com uma barra de ferro, Clara conseguiu abrir uma passagem suficiente para se esgueirar. O interior era um vazio absoluto. Nenhum som ecoava. Nenhum passo, nenhum suspiro. O silêncio era total — opressor, quase físico.

Ela se sentiu flutuar. Seus próprios pensamentos pareciam abafados. E, no fundo do bloco, viu algo que não deveria estar ali: um círculo de pacientes sentados, imóveis, com bocas costuradas, olhos escancarados e expressão de terror eterno. Todos voltados para uma figura central — uma mulher com cabelos curtos, corpo deformado e uma placa no peito: "Dra. Voss".

No momento em que os olhos mortos da médica encontraram os de Clara, o silêncio que envolvia o bloco se rompeu com um grito ensurdecedor — não vindo de uma boca, mas de dentro da mente de Clara.

Ela caiu de joelhos, com as mãos cobrindo os ouvidos, tentando sufocar a dor mental. Vozes começaram a invadir sua mente em camadas, como se dezenas de consciências tentassem falar ao mesmo tempo:

— “Eles nos silenciaram.”

— “Você é a ponte.”

— “Fale por nós.”

O círculo de corpos começou a se mover. Lentamente, como se despertassem de um transe. As bocas costuradas se desfaziam com o som do próprio grito mental de Clara. Fios de sangue caíam no chão como se tivessem vida. As sombras cresceram, e Clara correu.

Saiu do bloco tropeçando, com as mãos sangrando e o nariz vertendo sangue. A visão turva. O hospital parecia respirar mais forte agora, como se soubesse que ela abrira mais uma porta.

A porta da voz. A da memória. A da dor.

De volta à sala principal, Clara escreveu com dedos trêmulos em seu caderno:

“O hospital quer falar. E eu... estou começando a ouvir tudo.”

Continua...

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Taciane Freires

Taciane Freires

Ótimo Livro

2025-05-20

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