Capítulo 4 Sub-solo

Subsolo

Clara amanheceu com a garganta seca e os olhos ardendo. Mal dormira. As vozes da noite anterior ainda ecoavam na mente, misturando-se com a imagem persistente da menina no espelho. Ela sabia que aquela visão não fora alucinação. Havia algo no hospital que ultrapassava as explicações racionais, e Eliza Moura era a chave para tudo aquilo.

Depois de preparar uma xícara de café solúvel em seu pequeno fogareiro portátil, Clara sentou-se diante do fichário encontrado na noite anterior. Entre papéis envelhecidos e anotações médicas ilegíveis, encontrou um mapa antigo da estrutura subterrânea do sanatório. Ele revelava algo que não constava nos registros públicos: um nível abaixo do porão, identificado apenas como “Nível D”.

O mapa indicava o acesso através de uma escada metálica escondida atrás do arquivo principal do porão. Clara sentiu o estômago revirar. O medo não era mais apenas sensação — era presença física ao seu redor.

Com a mochila pronta, a lanterna recarregada e o gravador de voz ligado, ela desceu até o porão novamente. O cheiro de podridão parecia mais intenso que na noite anterior. Cada degrau de concreto rangia como se não fosse pisado há décadas. Ela afastou caixas e estantes tombadas até encontrar uma chapa de ferro no chão, presa por correntes e um cadeado antigo.

— Nível D... — sussurrou.

Tentou forçar o cadeado com uma chave inglesa e, após alguns minutos de esforço, a trava cedeu com um estalo seco. A chapa metálica rangeu ao ser aberta, liberando um sopro de ar frio e pesado que subiu como um gemido.

A escada para o nível inferior mergulhava na escuridão total. Clara respirou fundo e começou a descer. Os degraus de ferro estavam cobertos por ferrugem e umidade. Quando finalmente chegou ao final, os pés tocaram um chão de pedra antiga, coberta por água rala.

Estava num corredor estreito, escavado à mão, com paredes de pedra úmida. Era evidente que aquela seção do hospital havia sido mantida em segredo absoluto. As vozes retornaram — fracas, como se estivessem dentro das próprias pedras. Ela seguiu em frente.

Os primeiros aposentos estavam vazios, mas vestígios de ocupação humana estavam por todo lado: correntes enferrujadas, camas com cintos de contenção, marcas de unhas nas paredes. A dor impregnava o ambiente como um perfume invisível. Em uma das celas, havia um boneco de pano coberto por mofo, e no chão, uma frase riscada com carvão: “O tempo aqui não anda, ele se dobra.”

Mais adiante, uma porta de ferro com uma pequena janelinha gradeada barrava o caminho. Clara espiou pelo visor: viu apenas escuridão. Porém, do outro lado, ouviu três batidas. Secas. Precisas.

Ela recuou, apavorada, mas algo em sua mente dizia que precisava continuar. Empurrou a porta. Estava destrancada.

O que havia ali era diferente de tudo que vira no hospital até então.

Era uma sala circular, com símbolos estranhos esculpidos nas paredes e no chão. Havia uma espécie de altar ao centro, rodeado por sete cadeiras em formato de trono, cada uma com nomes gravados em placas metálicas: Reinhardt, Voss, Meirelles, Grantham, Al Shariq, Holtzmann e Moura.

No altar, uma boneca de porcelana com olhos negros e rachaduras no rosto estava posicionada com as mãos entrelaçadas. Atrás dela, um quadro retratava uma reunião de médicos e uma menina com os olhos vendados — Eliza. Sob o quadro, uma inscrição em latim: "Vox in tenebris regit." — A voz governa na escuridão.

Clara começou a gravar tudo, narrando as descobertas. Quando mencionou o nome “Eliza”, a boneca no altar moveu levemente a cabeça.

Ela congelou.

O gravador chiou e parou de funcionar. A lanterna piscou. Um som de respiração pesada preencheu a sala. Clara girou em direção à porta, mas ela se fechou com estrondo. Trancada.

Então, uma luz vermelha se acendeu no teto. As cadeiras começaram a ranger, girando lentamente. No altar, a boneca caiu para frente e rachou ao tocar o chão. De dentro dela, escorreu um líquido preto e espesso que serpenteou pelo chão como se tivesse vontade própria.

A voz da menina surgiu novamente, agora mais próxima:

— Você veio me libertar... ou me substituir?

Clara tentou responder, mas a garganta travou.

— Eles me prenderam aqui embaixo porque eu sabia demais. Mas você ouviu. Agora, você vê também. Agora, não há volta.

A temperatura caiu abruptamente. A umidade nas paredes começou a congelar. Das cadeiras, sombras começaram a se levantar — figuras humanoides distorcidas, como se fossem resquícios dos médicos que lideraram os experimentos ali. Um deles avançou até Clara com movimentos erráticos, os olhos vazios e a pele apodrecida.

Clara caiu para trás, tentando afastar-se. Estava presa.

De repente, um som agudo tomou conta do ambiente, como uma sirene rasgando o ar. As sombras hesitaram, e a figura da menina surgiu entre elas — agora sem olhos, com a boca costurada e o vestido encharcado de sangue seco.

Ela ergueu a mão e apontou para Clara.

— Voz por voz. Olho por olho. Você entrou... agora fala por mim.

A boca da menina começou a se desfazer em fios, costura por costura, enquanto Clara sentia a própria garganta fechar. Ela tentou gritar, mas a voz não saía. Apenas o gravador, milagrosamente reativado, continuava emitindo sons — mas agora, não era Clara quem falava. Era uma nova voz. Uma voz antiga. E furiosa.

As sombras recuaram lentamente, e a menina desapareceu.

Clara caiu inconsciente sobre o chão de pedra, os olhos fixos no teto. Na parede, o líquido negro começava a formar letras:

“Ela agora vê por você. E você falará por ela.”

Continua...

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