Recomeço

Helena fechou os olhos por um instante, como se agradecesse silenciosamente ao destino.

— Fico aliviada em saber que o Eduard não morreu — murmurou, a voz embargada.

Mas Laura não se deixou levar pela emoção. Estreitou os olhos, desconfiada, como se procurasse alguma mentira escondida nas entrelinhas.

— Eu vi você chegando ao hospital. Estava desacordada, em uma maca, sendo reanimada pelos bombeiros. Estava completamente bêbada. Um dos seus órgãos foi perfurado. Você quase morreu. Precisou passar por uma cirurgia de emergência...

Ela desviou o olhar, apertando os lábios.

— Você atropelou o Eduard e, em seguida, fugiu em alta velocidade... ninguém sabia para onde. Pensamos que estivesse morta. Encontraram o seu carro incendiado, com marcas de tiros. As autoridades acreditam que o pessoal com quem você andava tentou te matar. Conversamos com a polícia, o papai tem amigos, pediu para manter tudo em sigilo, pela sua segurança. Poucas horas depois, um pescador te encontrou ferida, caída na mata.

Helena sentiu um nó na garganta. As palavras pareciam pesar mais do que podia carregar.

— Eu sinto muito... — conseguiu dizer. — Não merecia ter sobrevivido.

— Não diga besteira. — A voz de Laura endureceu. — Você tem uma segunda chance agora. Espero que a aproveite... e que não faça mais nossa família sofrer.

Fez-se um breve silêncio antes de Laura continuar:

— O papai levou o Eduard para casa dele. Suas coisas estão no meu apartamento. Você vai morar comigo... até conseguir um emprego e um lugar para ficar.

Helena a olhou, surpresa.

— Por que está fazendo isso por mim?

— Porque, apesar de tudo... você ainda é minha irmã. E eu não vou deixar você na rua. Mas escuta bem: essa é a única chance que vai ter comigo. Se pisar na bola outra vez... não terá mais família.

Helena assentiu, emocionada.

— Eu vou mudar. Prometo.

— Ok. Agora vamos para casa.

Júlia entrou no quarto pouco depois, com a mesma postura séria de sempre. Aproximou-se em silêncio para retirar os acessos do braço de Kyla.

— Quero te agradecer por ter cuidado de mim.

— Estou apenas fazendo meu trabalho, senhorita. Fico feliz que esteja voltando para casa. Te desejo uma boa recuperação.

— Obrigada! Você pode me dar seu número de telefone? Gostaria de continuar mantendo contato.

— Eu...

— Tudo bem se não quiser. Eu só... não tenho amigas e...

Júlia hesitou por alguns segundos, depois entregou um papel com seu número.

— Tudo bem. Aqui está. Pode contar comigo, se precisar.

Helena apertou o papel com carinho. Aquela mulher — sua antiga amiga — havia lhe dado uma pequena abertura, e isso bastava por agora.

Ela não queria perder mais tempo. A vida lhe dera uma nova chance, e ela pretendia agarrá-la com tudo o que tinha. Não sabia como, nem quando, mas queria reconquistar tudo o que perdeu. E começaria pela amizade de Júlia.

Ao chegar no apartamento de Laura, Helena notou o contraste. Tudo ali era muito simples — móveis antigos, decoração modesta — bem diferente da sua antiga cobertura, que, depois do “suicídio”, provavelmente foi vendida, assim como seus bens. O dinheiro, ao que parece, foi doado para instituições de caridade, já que ela “não tinha família”. A fortuna em sua conta bancária foi dividida entre seus dois melhores amigos: Júlia e Thomas.

Com dificuldade, ela caminhou até o quarto com a ajuda de Laura, deitando-se devagar na cama. Sentia-se exausta, não apenas fisicamente, mas por dentro. Tudo o que havia acontecido — com ela e com a família de Laura — pesava como um fardo silencioso.

— Meu chefe me deu apenas dois dias de folga. Vou cuidar de você enquanto estiver em casa. Mas, quando voltar ao trabalho, se precisar de qualquer coisa, pode me ligar. A mamãe te deu o número dela, já que seu celular desapareceu no acidente. Ela te enviou algumas mensagens... Espero que se recupere logo.

— Obrigada. Kyla não merece tudo o que está fazendo...

— Por que está se referindo a si mesma como se fosse outra pessoa?

— Desculpe... é que eu não me recordo de absolutamente nada.

Laura a observou em silêncio por alguns segundos.

— Entendo. E, para ser sincera, prefiro você assim... como é agora.

Durante os dois dias de folga, Laura cuidou da irmã com dedicação. Preparava o café da manhã, deixava o almoço pronto, e à noite fazia o jantar. Helena, por sua vez, mantinha contato com Júlia por mensagens. No início, a enfermeira estranhou uma paciente quereros aproximar dessa forma, mas aos poucos a amizade floresceu novamente — ainda que em um terreno novo e cauteloso.

O corpo de Kyla foi se recuperando, lentamente. E, durante esse tempo, apenas a mãe de Laura apareceu para visitá-las.

Um mês depois, Helena acordou cedo, determinada. Vestiu-se com o pouco que tinha, arrumou os cabelos com cuidado e foi até a sala, onde encontrou Laura terminando o café.

— Bom dia! Acordou cedo hoje. Vai sair? — Laura perguntou, tentando esconder a preocupação.

— Vou tentar encontrar um emprego.

— Se quiser, podemos sair no meu horário de almoço. Você ainda não se lembra de nada... pode acabar se perdendo.

— Anotei o endereço. E, sinceramente, preciso começar a ajudar nas despesas. Sobre os meus estudos... você sabe se eu tenho alguma formação?

— Você concluiu o ensino médio. E, acredite se quiser, fez alguns cursos. Entre eles: secretariado executivo e telemarketing.

— Sério? Pelo que me contou sobre mim, achei que seria incapaz de terminar qualquer coisa.

— Foi meio que uma competição. Eu comecei os cursos, e você se inscreveu também. Mas agora vai servir pra alguma coisa, né?

— Espero que sim. Com o que você trabalha mesmo?

— Recepcionista em um hotel

— Fico feliz por você! Me deseje sorte, irmã! — disse Kyla, abraçando Laura de forma sincera.

Laura ficou um pouco surpresa com o gesto, mas retribuiu com um sorriso contido.

— Aqui, pegue. — Ela entregou um pouco de dinheiro. — Caso precise pegar um táxi ou comprar algo para comer.

— Laura, não posso aceitar. Você já está me ajudando tanto...

— Não seja boba. Você não pode sair sem dinheiro. Algum imprevisto pode acontecer.

— Tudo bem... mas eu vou te devolver. Prometo.

Helena saiu pelas ruas da cidade, sentindo o vento tocar seu rosto. Parou por um instante em uma esquina movimentada, fechando os olhos para absorver a sensação de liberdade que tanto desejou enquanto estava trancada naquele porão escuro e sem janelas.

A tristeza, porém, veio logo em seguida. As lembranças eram muitas, dolorosas. Pensou nos amigos que perdeu, na carreira interrompida, no amor da sua vida. Pensou em Darius.

— Helena Smith morreu. Não existe mais — sussurrou para si mesma. — Agora sou Kyla... mas uma Kyla diferente. Uma que vai tentar, todos os dias, ser melhor. E tudo começa agora.

Foi até uma lan house, preparou alguns currículos com as poucas informações que tinha e saiu distribuindo pelas empresas da região. Caminhou por horas, entrando em comércios, batendo de porta em porta. Seu corpo ainda doía, mas sua vontade de recomeçar era maior.

Quando finalmente sentou-se em um banco, exausta, o celular vibrou. Era uma mensagem de Júlia.

Helena sorriu. Mas, ao ouvir a voz de Thomas ao fundo da ligação... seu coração disparou.

Era ele.

Seu melhor amigo.

Tão perto.

Tão real.

Ela precisou respirar fundo para não se deixar levar pela emoção. Ainda não era o momento. Um passo em falso... e poderia perder tudo outra vez.

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