Capítulo seguinte — O peso das entrelinhas
Lívia foi embora no fim da manhã, depois de um beijo calmo na porta e um último olhar que parecia carregar mais perguntas do que respostas. Júlia ficou em silêncio quando fechou a porta. Não subiu, não desceu. Apenas ficou parada, sentindo o eco do que tinha acontecido. E do que não deveria ter acontecido.
Na cozinha, Helena preparava o almoço com movimentos precisos, como se pudesse colocar ordem no mundo através das panelas. O cheiro bom se espalhava pela casa, mas o ambiente carregava algo mais — uma tensão leve, disfarçada de rotina.
— Tá com fome? — ela perguntou, sem olhar pra trás, ouvindo os passos de Júlia se aproximando.
— Tô. — respondeu, tentando soar natural.
Sentaram-se à mesa. Por alguns minutos, o único som era o dos talheres.
Foi Helena quem quebrou o silêncio.
— Olha... — começou, mexendo o arroz no prato com o garfo — talvez eu tenha sido um pouco dura quando te chamei de pirralha ontem
Júlia levantou os olhos, surpresa.
— É?
— É. — respondeu Helena, firme. — Você... já é adulta. Em muitos sentidos. Apesar da pouca idade.
A frase pairou entre elas. E então caiu, com todo o seu peso.
Júlia estreitou os olhos.
— Você andou ouvindo de novo, né?
Helena não respondeu de imediato. Bebeu um gole d’água, pousou o copo com cuidado e olhou para a menina.
— Não é como se eu tivesse escolhido ouvir. — disse.
_ ah sim claro que nao Helena
— Mas... Se você não quisesse que ngm ouvisse... o gemido foi alto demais.
Júlia engoliu em seco. A comida no prato já não parecia tão apetitosa. Ela ficou vermelha quase na hora.
— Desculpa. — murmurou. — A gente... eu... não era pra...
— Eu não tô brava, Júlia. — Helena interrompeu, mais calma agora. — Só... preocupada. Porque tem coisas que vêm antes da idade. Como saber se é o momento certo pra fazer algo.
Júlia largou o garfo.
— Eu ainda sou virgem. — disse, num impulso. — Mas não sou inocente. Eu sempre toquei a Lívia, desde o começo. Só... nunca deixei ela me tocar. Hoje foi um... deslize pequeno. Eu me senti pressionada, um pouco, por estarmos juntas há dois meses e isso nunca ter acontecido.
Helena sentiu um nó na garganta. O tipo de nó que só aparece quando o cuidado vira espinho.
— Júlia...
— Não tô dizendo que ela forçou nada, tá? — a menina se apressou. — Eu quis. Eu deixei um toque pequeno. Só que... não sei se tava pronta pra esse toque. Depois que aconteceu, eu só fiquei... vazia. E confusa.
Helena se encostou na cadeira, respirando fundo.
— Você não tem que se provar pra ninguém. Nem pra quem te ama. Se não é o momento, não é. E se for, que seja porque é o seu desejo. Não uma cobrança silenciosa.
Os olhos de Júlia marejaram, mas ela piscou forte.
— Eu tô tentando entender tudo isso ainda. Meu corpo, meu tempo. Eu achava que sabia. Mas depois de hoje...
Helena estendeu a mão sobre a mesa. Tocou de leve os dedos da menina.
— Tá tudo bem. O importante é que você saiba que pode falar. Que pode parar. Que pode mudar de ideia. Isso também é crescer.
Júlia sorriu, tímida.
— Você é boa em ser adulta, sabia?
— Eu sou boa em fingir que sou boa nisso. — Helena respondeu, fazendo as duas rirem.
O almoço continuou mais leve, as palavras menos afiadas, as entrelinhas menos pesadas. Mas ali, no meio da comida morna e do carinho discreto, havia uma verdade que nenhuma das duas ousava dizer em voz alta:
Helena não era só uma adulta preocupada. E Júlia não era só uma menina descobrindo o mundo.
As duas estavam, sem saber, mergulhadas numa zona cinzenta. Perigosa. Irresistível. Silenciosa.
— Helena disse, com suavidade. — Só... fiquei pensando. Foi só um toque, né? Nada além?
Júlia engoliu em seco. Pensou por alguns segundos antes de responder.
— Foi só um toque. Ainda sou... virgem, se é que isso ainda significa alguma coisa. — disse, mexendo no arroz com o garfo. — eu so meio que não pensei muito
O silêncio que se seguiu pareceu mais denso que o ar. Helena sustentou o olhar, mas não havia julgamento nele. Apenas um aperto mudo, um entendimento perigoso.
Júlia assentiu, os olhos um pouco marejados.
— Euu não quero que você pense... nada ruim de mim.
— Eu não penso. De verdade. Mas quero que você pense bem de si mesma. Se respeite. Não faça nada porque se sente pressionada, ou pra segurar alguém. Você merece mais do que isso. Entendeu?
Ela assentiu de novo. Mais firme dessa vez.
A conversa então se aliviou, e passaram a falar do curso novo que Júlia começaria no semestre seguinte, dos planos do pai dela com a mudança, e até do bolo que Helena pretendia fazer no fim de semana. A leveza voltou, aos poucos.
**
No fim da tarde, já no quarto, Júlia deitou na cama com o celular e abriu o chat com sua melhor amiga e ligou para ela.
[Júlia]: Amiga, preciso te contar uma coisa
[Mel]: Lá vem bomba
[Júlia]: Hoje eu deixei a Lívia me tocar meio que num impulso sabe, mas deixei
[Mel]: EITA
[Júlia]: Mas o pior nem é isso
[Mel]: O que é pior do que isso?
[Júlia]: Eu fechei os olhos e sem nem perceber pensei na Helena, como se ela tivesse me tocado
[Mel]: AAAAAAAAAAAA
[Júlia]: Não grita
[Mel]: Eu tô surtándoo, sua maluca sua baba mano
[Júlia]: É sério, e ela não é minha babá é a amiga do meu pai lembra
[Mel]: E ela sabe?
[Júlia]: Não. Mas... Ela ouviu meu gemido parece que ela meio que percebeu que eu tava diferente. A gente conversou...e eu disse que ainda sou virgem oq não deixa de ser mentira
[Mel]: E agora?
Júlia encarou o celular por alguns segundos, tentando dar uma resposta.
A porta estava entreaberta.
Helena tinha subido para chamá-la para jantar e parou ali, ouvindo parte da conversa.
"ah mel não sei eu sei que eu fechei os olhos e pensei na Helena... E foi bom ate eu voltar a abrir os olhos e ver a Lívia... ai meu pai ligou bem na hora e eu agradeci aos céuspor isso"
Helena Congelou por um segundo. Mas ao invés de entrar, recuou em silêncio. Desceu calmamente as escadas, os passos leves como se carregassem um segredo.
Na cozinha, acendeu as luzes, colocou os pratos sobre a mesa e, num tom mais alto e casual, gritou:
— Júlia! A janta tá pronta!
Sua voz não tremia. Era firme, neutra. Mas por dentro, tudo nela estava longe do silêncio que fingia.
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Atualizado até capítulo 21
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