A chuva caía fina sobre a mata que cercava a cabana. Lucy observava as gotas escorrerem pela janela enquanto Alex preparava café. O silêncio entre eles era denso, mas não desconfortável — era o tipo de silêncio que precedia revelações.
— Pronta? — ele perguntou, vindo com duas canecas fumegantes.
Ela assentiu, pegando a xícara com as mãos frias. A mesa estava tomada por anotações, papéis impressos e o notebook aberto. O pen drive estava ali, ao lado de uma folha com nomes destacados em marca-texto amarelo. Os mesmos nomes que apareciam repetidamente nos documentos analisados na noite anterior.
— E o vídeo? — perguntou Lucy. — Aquele chamado "Rostos Invisíveis". Você conseguiu abrir?
Alex clicou duas vezes no arquivo. A tela escureceu por um instante, e em seguida, imagens começaram a aparecer.
Não havia música. Só o som ambiente — portas de ferro se fechando, vozes abafadas, passos apressados em corredores sujos. A câmera parecia escondida, filmando através de frestas ou janelas com grades.
Uma mulher jovem, de não mais que vinte anos, apareceu na tela. Estava sentada em um colchão no chão, abraçada aos joelhos. Os olhos estavam vermelhos. Ela falava em outro idioma, mas a legenda digitalizada revelava: “Meu nome é Katia. Prometeram trabalho. Estou aqui há seis meses. Não deixam sair.”
Lucy cobriu a boca com a mão.
— Isso... é real. Não é encenação.
Alex apenas concordou com a cabeça, tenso.
O vídeo seguia com cortes bruscos: outras mulheres, algumas visivelmente menores de idade, em quartos improvisados. Havia uma lista de regras afixada na parede de um deles. Não sair. Não falar. Não resistir.
Depois, um homem apareceu. Alto, roupas formais, rosto parcialmente encoberto pela sombra. A voz era grave. Ele estava dando instruções.
— “Quarta-feira. Lote novo. Três do norte. Duas do centro. Falsificar os documentos. Quem reclamar, some.”*
O tempo pareceu parar.
— Eles estão traficando pessoas — disse Lucy, a voz embargada. — Mulheres jovens... meninas. Isso é uma rede de tráfico humano.
— E com apoio de gente grande — completou Alex. — Um dos nomes da lista é secretário adjunto da prefeitura. Outro é dono de uma rede de hotéis. Isso aqui não é só um crime — é um sistema inteiro.
Lucy respirava com dificuldade. Era como se cada revelação drenasse um pouco mais de sua energia.
— Como a gente expõe isso? Sem ser morto antes?
Alex desligou o vídeo. A imagem da garota Katia ainda flutuava na mente dos dois, como um lembrete do que estava em jogo.
— Precisamos de provas sólidas. E de proteção. Vamos montar um dossiê. Deixar cópias em lugares diferentes. Assim, se nos acharem, o conteúdo vaza de qualquer forma.
Ela assentiu, ainda atônita.
— Você está mesmo disposto a seguir até o fim?
Ele a encarou.
— Estou disposto a morrer por isso. Mas não vou deixar que te façam mal.
Lucy não soube o que responder. As palavras eram fortes demais. O silêncio que se seguiu foi intenso — e cheio de significados.
**
A noite chegou com trovões distantes e uma sensação incômoda de que estavam sendo observados. Mesmo isolados, cercados por árvores e silêncio, Lucy não conseguia relaxar. Ela deitava, mas os olhos ficavam abertos no escuro.
Alex, do outro lado do quarto, mexia no notebook, fones no ouvido. Mas em certo momento, ele percebeu o olhar dela.
— Quer conversar?
— Eu não consigo desligar minha mente. Aquela garota... Katia. E as outras... elas têm família, alguém esperando por elas?
Ele desligou o notebook.
— A maioria não. São estrangeiras, muitas vezes trazidas com promessas falsas. Cortam todos os laços. E se alguém procura... compram o silêncio.
Lucy sentou-se na beira da cama.
— É monstruoso. E está acontecendo a poucos quarteirões de onde eu moro. Enquanto eu discutia com você por causa do barulho da furadeira, mulheres estavam sendo presas, abusadas...
— A gente não sabia.
— Mas agora sabemos. E nunca mais seremos os mesmos.
Ele se aproximou, sentando ao lado dela. Tocou sua mão com delicadeza.
— Não precisa carregar isso sozinha.
— Não estou — ela respondeu, encarando-o. — Eu tenho você. E, por mais estranho que isso seja, é o que me mantém de pé.
Ele sorriu, um sorriso leve, mas cheio de gratidão.
— Eu era o cara ranzinza da porta ao lado. E agora sou seu cúmplice num caso federal.
— E talvez algo mais — ela sussurrou.
Alex se aproximou. Não havia mais barreiras, nem tempo para jogos. O beijo foi inevitável. Profundo, envolvente, como um pacto silencioso entre dois sobreviventes.
Ali, naquele quarto simples, em meio ao caos, nasceu algo raro: intimidade verdadeira.
**
Na manhã seguinte, começaram a montar o dossiê. Separaram arquivos por tema: rotas, nomes, vídeos, mapas. Usaram criptografia básica para proteger os dados. Fizeram cópias em dois pen drives e uma nuvem segura que Alex ainda usava para trabalhos antigos de fotografia.
Lucy digitava rápido, absorvendo cada detalhe.
— Esse hotel aqui... o mesmo que está nos arquivos. Eu já fui em um evento lá. Era tudo luxuoso demais. Agora entendo.
— Usam o luxo como fachada. Escondem horrores por trás do requinte.
Ao meio-dia, Lucy recebeu uma notificação no relógio digital: sua loja havia sido invadida. Alarmes desligados. A porta arrombada.
— Eles me acharam — disse ela, pálida.
Alex se levantou num salto.
— Isso foi um recado. Eles não te acharam ainda. Mas estão tentando te assustar. Nos forçar a desistir.
Ela tremia.
— E se tiverem plantado algo? Drogas? Qualquer coisa que me incrimine?
— Por isso precisamos agir logo. Vamos enviar parte do material pra um jornalista. Alguém que possa investigar por conta própria.
— Você conhece alguém de confiança?
— Sim. E ele vai querer isso.
**
Passaram a tarde montando uma versão compacta do dossiê. Cuidaram de esconder os rostos das vítimas. Focaram nos nomes dos envolvidos e nas provas técnicas. Alex enviou um link seguro para o contato do jornal com um bilhete anônimo:
"A verdade está aqui. O silêncio custa vidas."
O envio foi feito. Agora, era esperar.
Lucy estava exausta. Não fisicamente — mas emocionalmente.
— Se tudo der errado... se esse dossiê não for suficiente... — começou ela, a voz embargada.
— Vamos continuar. Até o fim. Juntos — respondeu ele.
Ela encostou a cabeça no ombro dele. Pela primeira vez em dias, se permitiu respirar mais fundo.
— Você já pensou em como isso tudo começou? — perguntou ela. — Eu batendo na sua porta por causa da furadeira.
Alex riu, levemente.
— E eu implicando com o barulho do seu salto às sete da manhã.
— E agora estamos aqui. Fugindo de criminosos. Tentando salvar pessoas. Apaixonados.
Ele a encarou.
— Apaixonado, sim. E decidido. Você me mostrou que há mais na vida do que meus próprios muros.
Lucy sorriu, um sorriso cansado, mas verdadeiro.
— E você me ensinou a confiar em alguém. Eu achava que estava segura sozinha. Mas nunca estive. E agora... sinto que finalmente tenho um lar. Mesmo no meio dessa bagunça.
Alex passou o braço por seus ombros, puxando-a para perto.
— A gente vai sair dessa. E vamos expor tudo. Por elas. Por nós.
Do lado de fora, o céu começava a escurecer outra vez. Mas ali dentro, mesmo cercados de medo e incerteza, havia um tipo raro de luz. A que nasce quando duas pessoas decidem enfrentar o mundo, uma ao lado da outra.
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Atualizado até capítulo 41
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