Rastros na Penumbra

Lucy não dormiu naquela noite. Depois do beijo — intenso e inesperado —, ela e Alex passaram horas conversando no sofá, tentando montar o quebra-cabeça que surgia entre as sombras de suas memórias. As peças ainda estavam embaralhadas, mas uma coisa era certa: estavam sendo observados.

— O que você vai fazer agora? — ela perguntou, enquanto o céu começava a clarear pelas frestas da janela.

— Investigar. Discretamente. Tenho algumas câmeras que posso instalar perto do 308 sem chamar atenção. E talvez... voltar a falar com um antigo contato — disse ele, com o olhar distante.

Lucy o encarou, preocupada.

— Você não devia se envolver de novo. Já teve problemas com isso antes.

— E você está no meio agora. Então não é mais uma escolha.

Ela não respondeu. Apenas se aproximou, tocando a mão dele. Alex virou o rosto para encará-la, e por um breve instante, o peso do que estava por vir pareceu mais leve.

**

Horas depois, Lucy desceu até o térreo fingindo normalidade. Queria buscar um café e observar quem entrava e saía do prédio. Desde a ligação, sua paranoia tinha ganhado raízes.

O porteiro, Seu João, estava distraído com a televisão ligada em volume baixo. Lucy forçou um sorriso.

— Bom dia, João. Alguma novidade por aqui?

— Nada além dos entregadores de sempre. E de um novo “inquilino” no 308. Chegou ontem à noite, mas entrou sem dizer muita coisa.

Lucy sentiu um calafrio.

— Novo inquilino? Achei que aquele apartamento estava vazio.

— Pois é. Apareceu de repente. Um sujeito de terno, mala discreta. Nem puxou conversa. Me deu um olhar frio e entrou direto.

— Ele disse o nome?

— Não. Só entregou um papel com o número do apartamento.

Lucy agradeceu e saiu para a rua com o coração batendo rápido. Ligou para Alex.

— Acharam uma desculpa pra justificar o movimento no 308. Um tal de “novo inquilino”.

— Isso confirma que estão tentando parecer normais. Mas erraram ao subestimar você — respondeu ele, com a voz firme. — Tô indo aí instalar as câmeras. Vai manter a rotina?

— Vou tentar. Mas a gente precisa saber quem é esse cara. Ver se ele aparece de novo.

— Já tenho um plano.

**

Naquela noite, Lucy foi até o apartamento de Alex novamente. Dessa vez, levava duas taças e uma garrafa de vinho.

— A gente pode estar à beira de uma conspiração perigosa, mas não é por isso que eu vou deixar de beber um bom Cabernet — disse, erguendo a garrafa.

Alex riu, abrindo espaço para ela entrar.

— E eu achando que você era só a vizinha mandona e implicante.

— E eu achando que você era só um fotógrafo metido e misterioso.

Eles se sentaram no tapete da sala, entre almofadas e papéis. Alex tinha montado uma espécie de painel com fotos ampliadas, anotações em post-its e croquis do corredor do prédio.

— Você sempre foi assim? — ela perguntou, girando o vinho na taça.

— Assim como?

— Obcecado em descobrir a verdade. Em juntar pistas. Em consertar o mundo.

Alex ficou em silêncio por um momento, encarando o próprio reflexo no vinho.

— Depois que meu pai foi acusado injustamente de um crime que não cometeu, tudo em mim mudou. Eu tinha quinze anos. Ele foi preso, mesmo com provas fracas. Fui atrás, investiguei. Descobri que alguém tinha forjado parte dos documentos.

— E você contou à polícia?

— Contei. Ignoraram. Foi quando percebi que, às vezes, a verdade não é suficiente. Ela precisa ser exposta com força.

Lucy se aproximou, tocando levemente o braço dele.

— O que aconteceu com seu pai?

— Morreu na cadeia. Três dias antes do julgamento que poderia absolvê-lo.

Ela sentiu um aperto no peito.

— Alex...

— Desde então, prometi a mim mesmo que não deixaria mentiras vencerem. Mas você é a primeira pessoa em anos que me faz querer cuidar de outra coisa além da verdade.

Lucy sentiu um nó na garganta. Sabia que estava se apaixonando por ele, mas ouvir isso da boca de Alex deixava tudo ainda mais intenso.

Eles se aproximaram, e antes que o silêncio se tornasse constrangedor, ela o beijou.

Dessa vez, o beijo foi mais doce. Como uma promessa silenciosa.

**

No dia seguinte, Alex deixou Lucy em casa e saiu com sua câmera escondida dentro de uma mochila comum. Instalou duas microcâmeras no corredor: uma apontando para a porta do 308, e outra para a entrada do andar. Em menos de quinze minutos, estava de volta ao apartamento.

Ele e Lucy assistiram as primeiras horas de gravação juntos, sem encontrar nada de estranho. Apenas movimento esporádico de vizinhos.

Mas por volta das três da tarde, algo chamou atenção.

— Olha isso — Alex apontou.

O “novo inquilino” saiu do apartamento. Usava um boné baixo, capuz e uma mochila simples. Olhou para os dois lados, desceu as escadas e... desapareceu do ângulo da câmera.

— Me diz que você consegue dar um zoom nessa imagem — disse Lucy.

— Consigo. Mas melhor do que isso... — ele clicou em outro vídeo — ...eu segui ele depois. Fui atrás com a câmera de ombro. Peguei algumas fotos.

Alex mostrou quatro imagens. Em uma delas, o homem estava em frente a um galpão abandonado a seis quarteirões do prédio. Conversava com dois outros homens, ambos com aparência militar, de costas para a câmera.

— Esse lugar é suspeito. Tem movimento à noite. Caminhões entram e saem sem marcação. Vi caixas sendo carregadas, mas nenhuma com rótulo.

— Você acha que... pode ter relação com tráfico?

— Talvez. Ou coisa ainda pior. Esses galpões já foram usados por quadrilhas de contrabando de armas.

Lucy gelou.

— Alex, isso é grande demais.

— Eu sei. E é por isso que não podemos parar.

— E se eles descobrirem que estamos investigando?

— Já descobriram, Lucy. A ligação, a ameaça... Eles sabem. Agora a única forma de vencê-los é indo até o fim.

Lucy mordeu o lábio. Sentia medo, mas também um impulso que não conseguia explicar.

— Então vamos até o fim.

**

Naquela noite, ela voltou ao seu apartamento, prometendo se manter atenta. Mas ao fechar a porta, percebeu algo estranho.

A cortina da janela estava levemente puxada. E ela tinha certeza de que havia deixado tudo fechado.

Foi até lá. E o medo congelou sua espinha.

Em cima da mesinha de centro, havia uma fotografia impressa. De costas, caminhando sozinha pela rua, no dia anterior.

Ela girou a foto. No verso, com letras marcadas em tinta preta:

“Você não sabe com quem está lidando.”

Lucy caiu sentada no sofá, as mãos tremendo. O jogo tinha mudado. Eles não estavam mais apenas observando. Agora, estavam jogando com ela.

Pegou o celular e ligou para Alex.

— Eles entraram aqui.

— O quê?

— Deixaram uma foto. De mim. Me seguindo. Dentro do meu apartamento, Alex!

— Tranca tudo. Eu tô indo agora.

**

Vinte minutos depois, ele chegou ofegante. Conferiu cada canto do apartamento, trancou as janelas e portas, e instalou um alarme improvisado com sensor de movimento.

Lucy estava sentada, abraçada aos próprios joelhos.

— Isso tá ficando fora de controle — sussurrou.

Alex sentou ao lado dela.

— E é por isso que você vai dormir no meu apartamento hoje.

Ela hesitou por um segundo. Mas então assentiu.

— Tá. Mas só se tiver chocolate quente.

Ele sorriu, aliviado.

— Vai ter. Com marshmallows.

**

Enquanto a noite caía sobre a cidade, Lucy encarava a imagem que tinham deixado para ela. Aquela foto, aquele bilhete, aquele aviso...

Mas não era o medo que crescia dentro dela.

Era a fúria.

E ela já não era mais só a vizinha que brigava por barulho ou disputava espaço na vaga da garagem. Agora, era parte de algo muito maior.

E ao lado de Alex, estava pronta para descobrir o que se escondia atrás das portas do 308... e do próprio passado.

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Comments

Elenice Martins

Elenice Martins

coloca fotos dos personagens por favor

2025-05-08

1

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