A quinta-feira amanheceu com uma luz pálida e difusa, filtrada por uma camada espessa
de nuvens que prometia mais chuva, ou talvez apenas a continuação daquela
melancolia atmosférica que parecia ter se instalado na cidade. No La Lune, o dia
começou com o ritmo habitual: o aroma do café fresco se espalhando pelo salão ainda
vazio, o tilintar suave das xícaras sendo arrumadas no balcão, o murmúrio baixo de
Helena na cozinha, provavelmente conferindo o estoque ou planejando o especial do
dia.
Clara chegou pontualmente, vestindo seu uniforme improvisado – a camisa branca, a
calça jeans, o avental limpo amarrado na cintura. Tentou forçar um semblante neutro,
uma máscara de profissionalismo que escondesse a agitação interna que a noite
anterior lhe deixara. A imagem de Miguel, o encontro de olhares, a breve troca de
palavras, tudo aquilo reverberava em sua mente como ecos em um poço fundo. Eram
ecos de silêncio, paradoxalmente, pois o que mais a perturbava não era o que fora dito,
mas o que permanecia não dito, o universo de sentimentos contidos que ela percebia –
ou imaginava perceber – por trás da fachada tranquila daquele homem.
O bistrô logo começou a encher. O burburinho das conversas matinais, o som da
máquina de expresso trabalhando sem parar, o riso ocasional de um grupo de amigos
compartilhando o café. Clara mergulhou na coreografia familiar do
atendimento: anotar pedidos, servir mesas, recolher pratos sujos, trocar algumas
palavras cordiais com os clientes habituais. Era um trabalho que exigia movimento
constante, atenção aos detalhes, um sorriso pronto – mesmo que forçado. E, de certa
forma, essa exigência de presença física e mental era um alívio. Mantinha seus
pensamentos ocupados, ancorados no presente imediato, longe das águas turbulentas
de suas próprias emoções.
Mas a mente tem seus próprios caminhos, e mesmo em meio ao caos organizado do
serviço, a imagem de Miguel persistia. Não como uma obsessão, mas como uma
pergunta silenciosa. Quem era ele? O que o levava a buscar refúgio naquele canto escuro
do bistrô todas as quartas-feiras? E, a pergunta mais incômoda de todas: por que sua
presença a afetava tanto?
Ela tentava racionalizar. Era apenas um cliente. Um homem bonito, sim, com um ar
misterioso que talvez despertasse a curiosidade de qualquer mulher. Mas ela não era
qualquer mulher. Ela era Clara, a sobrevivente, a mulher que aprendera da maneira mais
dura a desconfiar de aparências, a erguer muros altos ao redor de seu coração ferido.
Não podia, não devia, deixar-se levar por uma simples troca de olhares, por uma
sensação fugaz de conexão.
No entanto, enquanto limpava a mesa número cinco, perto da janela, seus olhos foram
atraídos para o chão. Algo pequeno e escuro estava parcialmente escondido sob a perna
da cadeira. Um objeto familiar. Abaixou-se, o coração dando um salto involuntário. Era
um marcador de páginas. De couro escuro, com bordas ligeiramente desgastadas pelo
uso e um brilho dourado discreto nas letras da inscrição. O marcador de Miguel.
Ele o esquecera. Na noite anterior, tão absorto em seu livro ou em seus próprios
pensamentos, ele o deixara para trás.
Clara pegou o marcador com as pontas dos dedos, sentindo a textura suave do couro.
Virou-o, relendo a inscrição quase apagada que a intrigara tanto: “Mesmo as páginas
rasgadas têm valor.”
A frase ressoou nela com uma força inesperada. Páginas rasgadas. Era assim que ela se
sentia. Um livro cuja história fora interrompida bruscamente, cujas páginas mais
importantes haviam sido arrancadas, manchadas, amassadas. Uma história que ela
tentava reescrever, mas cujas rasuras eram visíveis demais, pelo menos para si mesma.
Mas a frase dizia que mesmo essas páginas, as rasgadas, as imperfeitas, ainda tinham
valor. Era uma ideia simples, quase um clichê de autoajuda, mas vinda daquele objeto,
encontrado naquele contexto, pareceu carregar um significado mais profundo. Seria
uma mensagem para ela? Uma coincidência? Ou apenas a filosofia de vida de um
homem que também carregava suas próprias páginas rasgadas?
Olhou ao redor, certificando-se de que ninguém a observava. Helena estava na cozinha,
Adriana atendia a uma mesa do outro lado do salão. Hesitou por um instante. O
procedimento correto seria entregar o objeto no caixa, na seção de “Achados e
Perdidos”. Era o profissional a fazer. Mas algo a impediu.
Um impulso inexplicável, uma sensação de que aquele pequeno objeto continha algo
mais do que aparentava, fê-la deslizar o marcador para dentro do bolso de seu avental.
Foi um gesto rápido, quase furtivo, carregado de uma sensação estranha de
cumplicidade secreta. Com quem? Com Miguel? Ou consigo mesma, com a parte dela
que ainda ansiava por acreditar que suas próprias páginas rasgadas poderiam, de
alguma forma, ter valor?
Sentiu o contorno do marcador no bolso durante o resto do turno. Um lembrete
constante daquele encontro silencioso, daquela conexão tênue e perturbadora. Não
conseguia explicar por que o guardara. Talvez fosse um desejo infantil de ter um elo, por
menor que fosse, com aquele homem misterioso. Talvez fosse uma forma de se agarrar à
esperança implícita naquelas palavras gravadas no couro. Ou talvez fosse apenas um ato
de rebeldia contra a própria lógica, contra a voz interna que lhe dizia para manter
distância, para não se envolver, para proteger a todo custo a frágil paz que conquistara.
No final do expediente, enquanto trocava de roupa no pequeno vestiário nos fundos,
tirou o marcador do bolso e o observou novamente sob a luz fraca da lâmpada. Passou o
dedo sobre as letras douradas. “Mesmo as páginas rasgadas têm valor.” Quem teria
dado aquele marcador a ele? Teria sido a esposa que ele perdera? Ou seria um lema
pessoal, uma forma de lidar com a própria dor?
Guardou o marcador cuidadosamente em sua bolsa, entre a carteira e o celular. Não
contou a ninguém sobre o achado. Não mencionou a Helena, nem a Adriana. Era um
segredo. Um pequeno tesouro encontrado em meio à rotina, cujo significado ela ainda
não compreendia, mas que sentia, de alguma forma, pertencer-lhe.
Naquela noite, em seu apartamento silencioso, o marcador repousava sobre a mesinha
de cabeceira. Clara preparou seu chá de camomila habitual, tentando relaxar após o dia
agitado. Mas o sono demorou a chegar. A mente repassava os eventos do dia, as
conversas triviais, os pedidos atendidos, mas sempre retornava àquele pequeno objeto
de couro.
O que fazer com ele? Deveria devolvê-lo na próxima quarta-feira? Seria essa a atitude
correta, a forma de encerrar aquele ciclo de pensamentos incômodos. Mas a ideia de se
aproximar dele novamente, de iniciar uma conversa, por mais banal que fosse, a deixava
ansiosa. E se ele interpretasse mal? E se ela mesma interpretasse mal?
Levantou-se e foi até a janela, observando as luzes da cidade que começavam a se
acender. A noite lá fora parecia vasta e indiferente. Sentiu-se pequena, perdida em meio
à imensidão. A solidão, sua velha companheira, envolveu-a como um manto frio. Por
que aquele homem, aquele estranho, conseguia abalar suas estruturas de forma tão
profunda?
Talvez fosse a vulnerabilidade compartilhada. Talvez, no fundo, ela reconhecesse nele
um igual, alguém que também navegava pelas águas escuras da perda e da dor. Alguém
que, assim como ela, buscava um refúgio no silêncio, nas rotinas, nos pequenos rituais
que davam alguma ordem ao caos interno.
Voltou para a cama, o chá intocado esfriando na caneca. Pegou o marcador novamente.
A textura do couro era reconfortante em suas mãos. Fechou os olhos, tentando afastar as
perguntas sem resposta. Decidiu que guardaria o marcador. Pelo menos por enquanto.
Seria seu pequeno segredo, seu lembrete silencioso de que, talvez, mesmo as histórias
mais sofridas pudessem ter um final diferente. Ou, pelo menos, um novo começo. Um
começo onde até mesmo as páginas rasgadas pudessem encontrar seu valor.
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Atualizado até capítulo 26
Comments
Dayane Dani
excelente 👏👏 👏
2025-05-06
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