Capítulo 2 – Marcas Invisíveis

A semana que se seguiu à primeira quarta-feira de Miguel no La Lune foi, para Clara, uma

sucessão de dias arrastados sob um céu invariavelmente cinzento. A chuva fina dera

lugar a uma umidade pegajosa que parecia impregnar tudo, desde as toalhas de mesa

do bistrô até os cantos mais escondidos de seus próprios pensamentos. A presença

silenciosa daquele homem, Miguel, instalara-se em sua mente como um hóspede

indesejado, porém persistente. Não era uma lembrança agradável, daquelas que

aquecem o peito; era mais como o eco incômodo de uma nota desafinada, uma

dissonância na melodia monótona que ela tentava impor à sua nova vida.

O rosto dele, com aquela expressão indecifrável de melancolia contida, surgia em

flashes inesperados. Enquanto esfregava com força uma mancha teimosa de café em

uma xícara de porcelana, via o reflexo fugaz dos olhos cinza-azulados dele na superfície

brilhante. Ao sentir o aroma forte do café sendo moído na máquina antiga do bistrô,

lembrava-se da voz grave e rouca dele, quase um sussurro, dizendo que não havia

pedido nada. Até mesmo nos breves momentos de silêncio, entre o burburinho dos

clientes e o tilintar dos talheres, a imagem dele se materializava, sentada à mesa do

canto, envolta em sua própria névoa de ausência.

Não, definitivamente não era saudade. Nem sequer uma curiosidade romântica. Era um

profundo desconforto, uma irritação quase infantil por ele ter conseguido, com um

simples olhar, atravessar as defesas que ela levara tanto tempo e dor para construir.

Aquele olhar não era invasivo, nem julgador, mas parecia ter a capacidade incômoda de

enxergar através das camadas de indiferença cuidadosamente aplicadas, tocando

diretamente nas marcas invisíveis que ela tanto se esforçava para esconder. As

cicatrizes. Aquelas que não sangravam mais, mas que latejavam sob a pele ao menor

toque da memória.

Clara detestava essa vulnerabilidade recém-descoberta. Passara os últimos meses – ou

seriam anos? – aperfeiçoando a arte da dissimulação. O sorriso automático para os

clientes, a postura ereta que mascarava o peso nos ombros, a conversa trivial que

preenchia os vazios e evitava perguntas mais profundas. Tornara-se uma atriz

competente no palco improvisado de sua existência, e odiava quando alguém parecia

perceber a atriz por trás da personagem. Miguel, com seu silêncio e sua aparente

capacidade de ver além, ameaçava desmascará-la, mesmo sem intenção.

E, no entanto, contraditoriamente, enquanto os dias se arrastavam – quinta, sexta,

sábado, o domingo melancólico, a segunda-feira arrastada, a terça-feira ansiosa –, Clara

se pegou contando as horas para a próxima quarta-feira. Não era um desejo de

reencontro, assegurava a si mesma repetidamente. Era apenas uma necessidade quase

clínica de entender. Entender o que, exatamente, aquele homem e seu silêncio

carregado de histórias não contadas haviam despertado nela. Que fio desencapado ele

havia tocado? Que porta trancada ele ameaçava arrombar?

A semana pareceu esticar-se como um elástico velho, cada dia trazendo consigo a poeira

das lembranças que ela varria para debaixo do tapete da rotina. Mantinha-se ocupada,

mergulhando no trabalho com uma dedicação quase febril. Limpava mesas com uma

energia excessiva, organizava os talheres com uma precisão militar, atendia aos pedidos

com uma eficiência que beirava a rigidez. Mas a cada vez que o pequeno sino de latão

sobre a porta do bistrô tilintava, anunciando uma nova chegada, seu coração dava um

salto involuntário e seu corpo enrijecia, numa reação defensiva automática. Nunca era

ele. Eram casais sorridentes, famílias barulhentas, estudantes apressados, turistas

curiosos. Pessoas normais, vivendo vidas normais, alheias ao turbilhão silencioso que

agitava o interior da garçonete de olhar distante.

Finalmente, a quarta-feira chegou, arrastando consigo uma brisa fria que anunciava o

fim do outono. Clara se arrumou com um cuidado que tentou disfarçar de rotina. A

mesma calça jeans confortável, a camisa branca impecavelmente passada, os cabelos

presos num coque ligeiramente mais arrumado que o habitual. Hesitou diante do

espelho do banheiro minúsculo de seu apartamento nos fundos do bistrô. Passou um

batom de cor neutra, apenas para dar um toque de vida aos lábios pálidos, um pequeno

ato de rebeldia contra a palidez que sentia por dentro. “Nada demais”, murmurou

para seu reflexo, tentando convencer a si mesma.

Entrou no salão do La Lune alguns minutos antes do início de seu turno, o olhar

varrendo discretamente o ambiente enquanto pendurava o casaco. O relógio antigo na

parede marcava o tempo com uma lentidão exasperante. Dessa vez, escolheu uma

posição estratégica, perto do balcão, onde poderia observar a entrada sem ser

imediatamente notada. Fingiu organizar os açucareiros, a mente trabalhando em alta

velocidade, ensaiando uma indiferença que não sentia.

E então, pontualmente, como se obedecesse a um relógio interno marcado pela dor ou

pelo hábito, Miguel entrou. O mesmo terno escuro, talvez um pouco menos amassado

que na semana anterior. Os cabelos ainda rebeldes, a barba por fazer conferindo-lhe

aquele ar de artista torturado ou de homem que simplesmente desistira das

convenções. Ele parou por um instante na entrada, o olhar varrendo o ambiente, não

como quem procura alguém, mas como quem verifica se o refúgio ainda está intacto.

Seus olhos passaram por Clara sem se deterem, e ela sentiu um misto de alívio e uma

pontada inexplicável de... decepção? Repreendeu-se imediatamente. Que importância

tinha se ele a notara ou não?

Ele caminhou até a mesa do canto, a mesma de sempre, e sentou-se, depositando ao

lado uma pasta de couro gasta e um livro. Abriu o livro imediatamente, mergulhando em

suas páginas como um náufrago que encontra terra firme. Clara o observou por cima da

borda de uma taça que fingia polir. Ele parecia mais relaxado hoje, talvez. Ou apenas

mais resignado. As linhas de expressão ao redor dos olhos pareciam um pouco mais

suaves, a tensão nos ombros, menos pronunciada. Mas o cansaço ainda estava lá, uma

sombra persistente em seu semblante. Era como olhar para uma paisagem familiar e

desoladora. O mundo, ela pensou com uma pontada de amarga empatia, parecia ter

sido igualmente cruel com ele.

Foi nesse instante de observação clandestina que a percepção a atingiu com a clareza de

um raio: não era Miguel, o homem, que a perturbava. Era o espelho. Era o que ele refletia

dela mesma. A capacidade de sentir dor, a marca indelével da perda, a solidão que se

esconde por trás de uma fachada de normalidade. E, mais assustador ainda, ele

despertava a lembrança tênue, quase apagada, de que um dia ela também fora capaz de

sentir outras coisas. Coisas boas. Confiança. Alegria. O desejo de tocar e ser tocada sem

medo. Sentimentos que ela acreditava ter enterrado para sempre, junto com seu antigo

nome e sua antiga vida. Sentimentos que lhe custaram caro demais, um preço que ela

jurara nunca mais estar disposta a pagar.

Clara desviou o olhar abruptamente, o coração palpitando de forma irregular. Respirou

fundo, tentando acalmar a tempestade interna. Não, não era paixão. Estava longe disso.

Não era nem mesmo esperança. Era apenas o reconhecimento assustador de uma

rachadura na muralha que ela construíra com tanto esmero ao redor de si mesma. Uma

rachadura fina, quase invisível, mas que ameaçava comprometer toda a estrutura. E ela

sabia, por experiência própria, que às vezes era assim, com uma pequena fissura, que

tudo começava a desmoronar.

Adriana, a outra garçonete, aproximou-se da mesa de Miguel com seu bloco de notas e

um sorriso profissional. Clara observou a interação à distância. Miguel ergueu os olhos

do livro, respondeu às perguntas de Adriana com monossílabos educados, fez seu

pedido habitual. Café sem açúcar. Uma fatia generosa do pão artesanal de fermentação

lenta que Helena assava toddos dias, servido com um fio de azeite extra virgem e

um raminho de alecrim fresco. O mesmo pedido. A mesma rotina. Uma previsibilidade

que, por um lado, era reconfortante, mas por outro, intensificava o mistério ao redor

daquele homem.

Clara sentiu um impulso quase irresistível de ir até lá, de assumir o atendimento daquela

mesa, como Helena a incentivara a fazer na semana anterior. Mas hesitou. Fugir parecia

covardia, uma admissão de que ele a afetava. Mas ir até lá... o que diria? O que

esperaria? Sentiu-se paralisada pela indecisão, uma sensação que conhecia bem

demais.

Foi Miguel quem quebrou o impasse. Após Adriana se afastar, ele ergueu novamente os

olhos do livro e seu olhar encontrou o de Clara do outro lado do salão. Dessa vez, ele a

viu. E não desviou o olhar. Houve um reconhecimento silencioso, uma fração de

segundo em que o tempo pareceu parar. Ele não sorriu, mas houve uma leve inclinação

de cabeça, um cumprimento mudo, quase imperceptível para qualquer outra pessoa no

bistrô. Mas Clara viu. E sentiu.

Recompondo-se, ela pegou seu próprio bloco de notas e caminhou em direção a outra

mesa, onde um casal a aguardava. Manteve a postura firme, o rosto impassível. Mas por

dentro, a rachadura na muralha parecia ter se alargado um pouco mais.

Mas logo em seguida, Adriana se aproximou do balcão, ofegante e sobrecarregada.

— Clara, pode levar o café do Miguel hoje? Estou atolada de pedidos — pediu, sem tempo para disfarçar o cansaço.

Clara hesitou por um instante. Fugir pareceria fraqueza. Aceitar seria admitir que ele a afetava. Mas no fim, pegou a bandeja com mãos firmes, sem dizer nada.

Ela levou o pedido até a mesa. Depositou a xícara com cuidado, evitando o olhar dele.

— Seu café. E o pão — disse, num tom neutro.

— Obrigado, Clara — ele respondeu. O nome dela, dito com aquela calma, teve um peso inesperado.

Antes de se afastar, ela arriscou um olhar para o livro que ele lia. Conseguiu captar palavras no título: “sombras” e “memória”. Achou curioso. Um homem envolto em silêncio lendo sobre lembranças.

De volta ao balcão, o sino da porta tocou. Um grupo entrou rindo alto. A rotina se impôs novamente. Mas Clara sabia: algo havia mudado. Uma rachadura pequena abrira-se na muralha que construíra ao redor de si.

E por menor que fosse, era o suficiente para deixar passar um pouco de luz.

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Comments

Dayane Dani

Dayane Dani

Está ficando ainda mais interessante ☺️

2025-04-27

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