A semana que se seguiu à primeira quarta-feira de Miguel no La Lune foi, para Clara, uma
sucessão de dias arrastados sob um céu invariavelmente cinzento. A chuva fina dera
lugar a uma umidade pegajosa que parecia impregnar tudo, desde as toalhas de mesa
do bistrô até os cantos mais escondidos de seus próprios pensamentos. A presença
silenciosa daquele homem, Miguel, instalara-se em sua mente como um hóspede
indesejado, porém persistente. Não era uma lembrança agradável, daquelas que
aquecem o peito; era mais como o eco incômodo de uma nota desafinada, uma
dissonância na melodia monótona que ela tentava impor à sua nova vida.
O rosto dele, com aquela expressão indecifrável de melancolia contida, surgia em
flashes inesperados. Enquanto esfregava com força uma mancha teimosa de café em
uma xícara de porcelana, via o reflexo fugaz dos olhos cinza-azulados dele na superfície
brilhante. Ao sentir o aroma forte do café sendo moído na máquina antiga do bistrô,
lembrava-se da voz grave e rouca dele, quase um sussurro, dizendo que não havia
pedido nada. Até mesmo nos breves momentos de silêncio, entre o burburinho dos
clientes e o tilintar dos talheres, a imagem dele se materializava, sentada à mesa do
canto, envolta em sua própria névoa de ausência.
Não, definitivamente não era saudade. Nem sequer uma curiosidade romântica. Era um
profundo desconforto, uma irritação quase infantil por ele ter conseguido, com um
simples olhar, atravessar as defesas que ela levara tanto tempo e dor para construir.
Aquele olhar não era invasivo, nem julgador, mas parecia ter a capacidade incômoda de
enxergar através das camadas de indiferença cuidadosamente aplicadas, tocando
diretamente nas marcas invisíveis que ela tanto se esforçava para esconder. As
cicatrizes. Aquelas que não sangravam mais, mas que latejavam sob a pele ao menor
toque da memória.
Clara detestava essa vulnerabilidade recém-descoberta. Passara os últimos meses – ou
seriam anos? – aperfeiçoando a arte da dissimulação. O sorriso automático para os
clientes, a postura ereta que mascarava o peso nos ombros, a conversa trivial que
preenchia os vazios e evitava perguntas mais profundas. Tornara-se uma atriz
competente no palco improvisado de sua existência, e odiava quando alguém parecia
perceber a atriz por trás da personagem. Miguel, com seu silêncio e sua aparente
capacidade de ver além, ameaçava desmascará-la, mesmo sem intenção.
E, no entanto, contraditoriamente, enquanto os dias se arrastavam – quinta, sexta,
sábado, o domingo melancólico, a segunda-feira arrastada, a terça-feira ansiosa –, Clara
se pegou contando as horas para a próxima quarta-feira. Não era um desejo de
reencontro, assegurava a si mesma repetidamente. Era apenas uma necessidade quase
clínica de entender. Entender o que, exatamente, aquele homem e seu silêncio
carregado de histórias não contadas haviam despertado nela. Que fio desencapado ele
havia tocado? Que porta trancada ele ameaçava arrombar?
A semana pareceu esticar-se como um elástico velho, cada dia trazendo consigo a poeira
das lembranças que ela varria para debaixo do tapete da rotina. Mantinha-se ocupada,
mergulhando no trabalho com uma dedicação quase febril. Limpava mesas com uma
energia excessiva, organizava os talheres com uma precisão militar, atendia aos pedidos
com uma eficiência que beirava a rigidez. Mas a cada vez que o pequeno sino de latão
sobre a porta do bistrô tilintava, anunciando uma nova chegada, seu coração dava um
salto involuntário e seu corpo enrijecia, numa reação defensiva automática. Nunca era
ele. Eram casais sorridentes, famílias barulhentas, estudantes apressados, turistas
curiosos. Pessoas normais, vivendo vidas normais, alheias ao turbilhão silencioso que
agitava o interior da garçonete de olhar distante.
Finalmente, a quarta-feira chegou, arrastando consigo uma brisa fria que anunciava o
fim do outono. Clara se arrumou com um cuidado que tentou disfarçar de rotina. A
mesma calça jeans confortável, a camisa branca impecavelmente passada, os cabelos
presos num coque ligeiramente mais arrumado que o habitual. Hesitou diante do
espelho do banheiro minúsculo de seu apartamento nos fundos do bistrô. Passou um
batom de cor neutra, apenas para dar um toque de vida aos lábios pálidos, um pequeno
ato de rebeldia contra a palidez que sentia por dentro. “Nada demais”, murmurou
para seu reflexo, tentando convencer a si mesma.
Entrou no salão do La Lune alguns minutos antes do início de seu turno, o olhar
varrendo discretamente o ambiente enquanto pendurava o casaco. O relógio antigo na
parede marcava o tempo com uma lentidão exasperante. Dessa vez, escolheu uma
posição estratégica, perto do balcão, onde poderia observar a entrada sem ser
imediatamente notada. Fingiu organizar os açucareiros, a mente trabalhando em alta
velocidade, ensaiando uma indiferença que não sentia.
E então, pontualmente, como se obedecesse a um relógio interno marcado pela dor ou
pelo hábito, Miguel entrou. O mesmo terno escuro, talvez um pouco menos amassado
que na semana anterior. Os cabelos ainda rebeldes, a barba por fazer conferindo-lhe
aquele ar de artista torturado ou de homem que simplesmente desistira das
convenções. Ele parou por um instante na entrada, o olhar varrendo o ambiente, não
como quem procura alguém, mas como quem verifica se o refúgio ainda está intacto.
Seus olhos passaram por Clara sem se deterem, e ela sentiu um misto de alívio e uma
pontada inexplicável de... decepção? Repreendeu-se imediatamente. Que importância
tinha se ele a notara ou não?
Ele caminhou até a mesa do canto, a mesma de sempre, e sentou-se, depositando ao
lado uma pasta de couro gasta e um livro. Abriu o livro imediatamente, mergulhando em
suas páginas como um náufrago que encontra terra firme. Clara o observou por cima da
borda de uma taça que fingia polir. Ele parecia mais relaxado hoje, talvez. Ou apenas
mais resignado. As linhas de expressão ao redor dos olhos pareciam um pouco mais
suaves, a tensão nos ombros, menos pronunciada. Mas o cansaço ainda estava lá, uma
sombra persistente em seu semblante. Era como olhar para uma paisagem familiar e
desoladora. O mundo, ela pensou com uma pontada de amarga empatia, parecia ter
sido igualmente cruel com ele.
Foi nesse instante de observação clandestina que a percepção a atingiu com a clareza de
um raio: não era Miguel, o homem, que a perturbava. Era o espelho. Era o que ele refletia
dela mesma. A capacidade de sentir dor, a marca indelével da perda, a solidão que se
esconde por trás de uma fachada de normalidade. E, mais assustador ainda, ele
despertava a lembrança tênue, quase apagada, de que um dia ela também fora capaz de
sentir outras coisas. Coisas boas. Confiança. Alegria. O desejo de tocar e ser tocada sem
medo. Sentimentos que ela acreditava ter enterrado para sempre, junto com seu antigo
nome e sua antiga vida. Sentimentos que lhe custaram caro demais, um preço que ela
jurara nunca mais estar disposta a pagar.
Clara desviou o olhar abruptamente, o coração palpitando de forma irregular. Respirou
fundo, tentando acalmar a tempestade interna. Não, não era paixão. Estava longe disso.
Não era nem mesmo esperança. Era apenas o reconhecimento assustador de uma
rachadura na muralha que ela construíra com tanto esmero ao redor de si mesma. Uma
rachadura fina, quase invisível, mas que ameaçava comprometer toda a estrutura. E ela
sabia, por experiência própria, que às vezes era assim, com uma pequena fissura, que
tudo começava a desmoronar.
Adriana, a outra garçonete, aproximou-se da mesa de Miguel com seu bloco de notas e
um sorriso profissional. Clara observou a interação à distância. Miguel ergueu os olhos
do livro, respondeu às perguntas de Adriana com monossílabos educados, fez seu
pedido habitual. Café sem açúcar. Uma fatia generosa do pão artesanal de fermentação
lenta que Helena assava toddos dias, servido com um fio de azeite extra virgem e
um raminho de alecrim fresco. O mesmo pedido. A mesma rotina. Uma previsibilidade
que, por um lado, era reconfortante, mas por outro, intensificava o mistério ao redor
daquele homem.
Clara sentiu um impulso quase irresistível de ir até lá, de assumir o atendimento daquela
mesa, como Helena a incentivara a fazer na semana anterior. Mas hesitou. Fugir parecia
covardia, uma admissão de que ele a afetava. Mas ir até lá... o que diria? O que
esperaria? Sentiu-se paralisada pela indecisão, uma sensação que conhecia bem
demais.
Foi Miguel quem quebrou o impasse. Após Adriana se afastar, ele ergueu novamente os
olhos do livro e seu olhar encontrou o de Clara do outro lado do salão. Dessa vez, ele a
viu. E não desviou o olhar. Houve um reconhecimento silencioso, uma fração de
segundo em que o tempo pareceu parar. Ele não sorriu, mas houve uma leve inclinação
de cabeça, um cumprimento mudo, quase imperceptível para qualquer outra pessoa no
bistrô. Mas Clara viu. E sentiu.
Recompondo-se, ela pegou seu próprio bloco de notas e caminhou em direção a outra
mesa, onde um casal a aguardava. Manteve a postura firme, o rosto impassível. Mas por
dentro, a rachadura na muralha parecia ter se alargado um pouco mais.
Mas logo em seguida, Adriana se aproximou do balcão, ofegante e sobrecarregada.
— Clara, pode levar o café do Miguel hoje? Estou atolada de pedidos — pediu, sem tempo para disfarçar o cansaço.
Clara hesitou por um instante. Fugir pareceria fraqueza. Aceitar seria admitir que ele a afetava. Mas no fim, pegou a bandeja com mãos firmes, sem dizer nada.
Ela levou o pedido até a mesa. Depositou a xícara com cuidado, evitando o olhar dele.
— Seu café. E o pão — disse, num tom neutro.
— Obrigado, Clara — ele respondeu. O nome dela, dito com aquela calma, teve um peso inesperado.
Antes de se afastar, ela arriscou um olhar para o livro que ele lia. Conseguiu captar palavras no título: “sombras” e “memória”. Achou curioso. Um homem envolto em silêncio lendo sobre lembranças.
De volta ao balcão, o sino da porta tocou. Um grupo entrou rindo alto. A rotina se impôs novamente. Mas Clara sabia: algo havia mudado. Uma rachadura pequena abrira-se na muralha que construíra ao redor de si.
E por menor que fosse, era o suficiente para deixar passar um pouco de luz.
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Atualizado até capítulo 26
Comments
Dayane Dani
Está ficando ainda mais interessante ☺️
2025-04-27
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