Entre Cicatrizes e Champagne

Entre Cicatrizes e Champagne

capítulo 1 Silêncio do primeiro dia

A garoa fina e persistente que caía sobre a cidade nova parecia uma cortina translúcida

separando Clara de seu passado recente. Cada gota que escorria pelos vidros do táxi

refletia as luzes urbanas de forma distorcida, quase onírica, enquanto o veículo

deslizava pelas ruas de paralelepípedos molhados. O cheiro que emanava do asfalto

úmido misturava-se ao odor de terra molhada vindo dos poucos canteiros que ladeavam

a via, uma fragrância que Clara aspirou profundamente, como se buscasse nela um

batismo, uma purificação simbólica. Um novo começo. Era a frase que ecoava em sua

mente, um mantra frágil contra a avalanche de memórias que tentavam romper a

barreira que ela erguera com tanto esforço.

Um endereço diferente, anotado às pressas em um guardanapo amassado, agora

cuidadosamente guardado na carteira como um talismã. Um nome a menos na agenda

do celular, deletado com dedos trêmulos em uma noite insone, o ato final de cortar uma

ligação tóxica. E nenhuma lembrança física dentro das duas malas surradas que

ocupavam o banco ao lado – apenas roupas cuidadosamente dobradas, alguns

utensílios de cozinha essenciais que pertenciam à sua avó e que ela se recusara a deixar

para trás, e as cicatrizes. Ah, as cicatrizes. Essas, invisíveis aos olhos alheios, pesavam

mais do que qualquer bagagem material. Eram marcas gravadas na alma, testemunhas

silenciosas de batalhas travadas em silêncio, de palavras que feriram mais que golpes,

de um amor que se transmutara em prisão.

O táxi parou em frente a um prédio de fachada antiga, espremido entre outros dois

igualmente vetustos. A ruazinha era charmosa, quase um clichê de cartão-postal

europeu, com suas sacadas de ferro trabalhado e floreiras tímidas desafiando a chuva.

Do outro lado da rua, quase escondido estava ele: o

bistrô. A placa de madeira escura, entalhada com letras cursivas delicadas, anunciava

“La Lune”.

O nome evocava uma sensação de mistério e tranquilidade, um refúgio sob

a luz prateada da lua. Clara imaginou o tipo de lugar que seria: mesas pequenas com

toalhas xadrez, velas tremulando, o aroma de pão fresco e café pairando no ar. Um

cenário perfeito para casais apaixonados sussurrando segredos, para amigos celebrando

pequenas conquistas, para pessoas felizes registrando em fotos pratos coloridos e

sorrisos espontâneos. Pessoas que Clara sentia pertencerem a um universo paralelo ao

seu. Ela nunca fora uma dessas pessoas. Ou talvez tivesse sido, há muito tempo, antes

que a vida lhe roubasse as cores.

Pagou o motorista, a voz quase um sussurro, e desceu do carro, sentindo o ar frio e

úmido no rosto. As malas pareceram pesar uma tonelada enquanto as arrastava pela

calçada irregular. Parou por um instante em frente à porta de madeira maciça do bistrô.

Hesitou. O coração batia descompassado, uma mistura de medo e uma fagulha

minúscula de esperança. Era ali. O lugar que que viu no jornal, contatada

em um momento de desespero, havia lhe indicado. Um emprego, um teto temporário no

pequeno apartamento quadras a baixo, uma chance.

Respirou fundo mais uma vez, o ar carregado de chuva e do cheiro adocicado que vinha

de dentro do bistrô – talvez baunilha, talvez canela. Empurrou a porta pesada e entrou.

O som de seus sapatos de sola gasta ecoou no piso de madeira escura e encerada, um

som quase profano na quietude acolhedora do lugar. O ambiente era exatamente como

imaginara, e ainda assim, surpreendente. Luzes baixas e amareladas criavam uma

atmosfera íntima, velas tremulavam dentro de pequenos castiçais de vidro em cada

mesa, e das paredes de tijolos aparentes pendiam quadros com paisagens tranquilas e

espelhos com molduras antigas que refletiam a luz de forma suave. O cheiro era ainda

mais intenso ali dentro: uma mistura complexa de café recém-passado, ervas frescas,

alho refogando e algo doce assando no forno. Um cheiro de comida caseira, de conforto,

de lar – uma palavra que Clara quase esquecera o significado.

Tudo ali parecia cuidadosamente orquestrado para transmitir paz e acolhimento. Uma

perfeição quase dolorosa para quem se sentia tão quebrada por dentro. Clara mal

conseguia compreender como seus passos a haviam guiado até ali, como se uma força

invisível a tivesse empurrado através daquela porta. O peso do passado, com suas

escolhas equivocadas, suas omissões covardes e suas falhas retumbantes, ainda a

seguia como uma sombra pegajosa. Mas ali estava ela, parada no meio daquele refúgio

improvável, tentando desesperadamente encontrar um fiapo de si mesma em meio aos

escombros.

— Clara? — A voz feminina, suave mas firme, a arrancou de seu torpor. Virou-se,

sobressaltada, e deparou-se com a mulher que seria sua âncora naquele mar revolto.

Cabelos castanhos presos em um coque frouxo, com alguns fios rebeldes escapando e

emoldurando um rosto de traços marcantes, mas gentis. Olhos castanhos expressivos,

que pareciam ler a alma. Vestia um jaleco branco impecável, curiosamente manchado

por uma pequena nódoa de vinho tinto perto do bolso, um detalhe que a tornava real,

humana. A mulher sorriu, um sorriso que não era apenas de cortesia, mas de genuína

boas-vindas, e estendeu a mão. — Sou Helena. Dona do bistrô. Seja bem-vinda ao seu

recomeço.

Clara apertou a mão estendida com uma força desmedida, quase desesperada, como

um náufrago que se agarra a uma tábua de salvação. As palavras de Helena – “seu

recomeço” – ressoaram fundo, atingindo um ponto sensível. Não sabia como

agradecer, como explicar a gratidão e o pânico que a invadiam simultaneamente. Não

sabia como fingir que estava tudo bem, que era apenas uma nova funcionária

começando um novo emprego. Mas Helena pareceu compreender tudo sem que uma

única palavra precisasse ser dita. Havia uma sabedoria antiga naquele olhar, uma

empatia que transcendia as formalidades.

— Venha, vou te mostrar onde deixar suas coisas e depois a cozinha. — Helena guiou-a

pelos fundos do salão, passando por um corredor estreito. — Aqui ninguém corre, Clara.

Ninguém grita. E, principalmente, ninguém pergunta sobre o passado, a menos que você

queira contar. A cozinha é território sagrado, nosso refúgio. Respire fundo. Vai dar tudo

certo.

Clara quis acreditar. Ah, como ela queria. Assentiu em silêncio, engolindo o nó na

garganta, e seguiu Helena, sentindo uma pequena chama de esperança tremeluzir em

meio à escuridão que a habitava.

Naquela primeira noite, o ritmo da cozinha foi um bálsamo inesperado. O som das facas

picando legumes na tábua, o chiado da cebola dourando na manteiga, o borbulhar

suave dos molhos nas panelas, o tilintar dos pratos sendo organizados. Era uma sinfonia

caótica e harmoniosa ao mesmo tempo, um fluxo constante de trabalho que exigia

concentração e a mantinha ancorada no presente, longe das memórias que a

assombravam. A primeira cliente do turno noturno entrou, trazendo consigo o cheiro da

chuva e um sorriso tímido. Depois outra, um casal de idosos de mãos dadas. E mais

outra, um grupo de amigas ruidosas. Pequenos pedidos eram anotados, bebidas

servidas, pratos quentes e fumegantes saíam do passe, a pequena abertura entre a

cozinha e o salão, e eram levados por Adriana, a outra garçonete, uma jovem de sorriso

fácil e movimentos ágeis.

Helena movia-se com a graça de quem conhecia cada centímetro daquele espaço, ora

supervisionando a finalização de um prato, ora conversando brevemente com um

cliente habitual, sempre com aquele sorriso sereno de quem já decifrara alguns dos

segredos da vida. Clara, por outro lado, sentia-se deslocada, uma peça estranha em uma

engrenagem bem azeitada. Observava, aprendia os nomes dos pratos, tentava

memorizar a disposição das mesas, sentindo-se uma intrusa em sua própria história

recém-iniciada. Mas, ainda assim, o calor que emanava do fogão e o ritmo constante da

noite lhe proporcionavam um alívio que não sentia há muito tempo. Era um cansaço

físico, real, que começava a suplantar o cansaço emocional que a consumia.

Foi então, no meio da noite, quando a chuva lá fora pareceu intensificar-se e o

movimento no salão diminuiu ligeiramente, que ele entrou. A porta se abriu devagar,

quase hesitante, e a figura alta e esguia recortou-se contra a luz da rua. Vestia um terno

escuro, impecavelmente cortado, mas visivelmente molhado pela chuva, os ombros

ligeiramente curvados, como se carregasse um peso invisível. Os cabelos castanhos,

espessos e ondulados, estavam desalinhados pela umidade e pelo vento, e uma barba

rala, por fazer, conferia-lhe um ar ao mesmo tempo distinto e negligente. Mas foram os

olhos que prenderam a atenção de Clara. Olhos profundos, de um tom indefinido entre

o cinza e o azul, que pareciam guardar um universo de silêncio. Um silêncio denso,

pesado, do tipo que só se encontra em quem já chorou escondido, em quem já

conheceu a dor em sua forma mais crua.

Ele não olhou para os lados. Caminhou diretamente para a mesa mais afastada, no

canto mais escuro do bistrô, longe das velas que tremulavam e da vitrine iluminada que

exibia tortas e doces tentadores. Sentou-se de frente para a parede, como se quisesse

dar as costas para o mundo. E não pediu nada. Apenas ficou ali, imóvel, os olhos

perdidos em algum ponto além das paredes de tijolos, imerso em uma ausência quase

palpável. Nada. Ele não queria nada além de silêncio.

— Ele vem todas as quartas-feiras — a voz de Helena sussurrou ao lado de Clara,

fazendo-a sobressaltar-se. Ela nem a vira aproximar-se. — Sempre neste mesmo horário.

Sempre se senta ali. Sempre calado. Perdeu a esposa há uns dois anos, num acidente estúpido.

Desde então, vem aqui. Acho que para... não sei. Sentir o cheiro de comida,

talvez. Ou o cheiro de vida. Para não se sentir tão sozinho no silêncio dele.

Clara se pegou observando o homem. Longamente. Havia algo nele que a perturbava

profundamente. Não era a beleza clássica, embora ele fosse inegavelmente bonito, de

uma forma melancólica e intrigante. Era a ausência. Ele parecia um espectro, um corpo

presente, mas uma alma flutuando em alguma memória distante, dolorosa. E Clara,

para seu próprio espanto, compreendeu aquele estado sem precisar de uma única

palavra. Era um espelho incômodo, refletindo um vazio que ela mesma temia carregar.

Não queria ser como ele, perdida naquela névoa de dor. Mas, contraditoriamente, algo

nele a atraía, a chamava para um território desconhecido de sua própria alma, algo que

ela ainda não estava pronta para nomear ou entender.

— Leve este prato para ele, no lugar da Adriana — disse Helena de repente, com um

sorriso maroto nos lábios, quebrando o feitiço. Ela indicou um risoto de cogumelos

trufados, fumegante e aromático, que acabara de sair da cozinha. — Eu? Mas... ele não

pediu nada. E você disse que a Adriana... — Exato. Você é a novidade aqui. Quem sabe

você não quebra a rotina dele? Às vezes, uma pequena mudança é tudo que alguém

precisa.

Clara hesitou, o coração novamente aos pulos. Sentiu o olhar curioso de Helena sobre si.

Pegou o prato, as mãos ligeiramente trêmulas, a porcelana quente aquecendo seus

dedos. Respirou fundo e começou a caminhar em direção à mesa do canto, sentindo

todos os olhares do pequeno bistrô convergirem para ela. Ou talvez fosse apenas sua

imaginação. No meio do caminho, os olhos dele encontraram os dela. Um encontro

fugaz, mas intenso. Por um instante eterno, Clara achou que ia tropeçar nos próprios

pés, que o prato escorregaria de suas mãos, que ia desabar em lágrimas ali mesmo. Não

sabia explicar a torrente de emoções que aquele simples cruzar de olhares provocou.

Mas teve a certeza incômoda de que aquele encontro, aparentemente banal, marcaria o

início de um novo capítulo. Um recomeço turbulento, talvez, mas um recomeço que,

sem saber, ela estava desesperadamente pronta para viver.

Chegou à mesa, parando a uma distância respeitosa. Ele ergueu o rosto completamente,

e ela pôde ver de perto as linhas finas de expressão ao redor dos olhos, a sombra de

cansaço sob eles.

— Seu pedido — conseguiu dizer, a voz mais firme do que esperava.

Ele franziu levemente o cenho, a expressão indecifrável.

— Eu... não pedi nada — respondeu ele, a voz grave, rouca, como se não fosse usada há

muito tempo. Uma voz que carregava o peso do mundo.

Clara engoliu em seco, mas sustentou o olhar.

— Mas precisa comer. Está chovendo lá fora. E... está frio aqui dentro sem algo quente no

estômago.

Os olhos dele permaneceram fixos nos dela por um instante que pareceu se esticar

indefinidamente. Um instante onde mundos silenciosos colidiram. Então, sem dizer

mais nenhuma palavra, ele desviou o olhar para o prato fumegante e, com um gesto

lento, quase imperceptível, assentiu. Aceitou o prato.

Clara sentiu um alívio estranho misturado a uma agitação ainda maior. Deu meia-volta

rapidamente e retornou para a segurança da cozinha, o coração martelando contra as

costelas como um pássaro assustado. Ela não sabia ainda, não podia imaginar, mas

aquele homem silencioso, perdido em sua própria dor, seria a primeira pessoa a

enxergá-la – de verdade, para além das aparências e dos disfarces – em muito, muito

tempo.

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Comments

Dayane Dani

Dayane Dani

História está muito interessante, e já estou na espectativa de mais capítulos👏👏👏👏

2025-04-25

0

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