Na quarta-feira seguinte, Clara sentia algo que não conseguia identificar. Era uma espécie de ansiedade tranquila que a acompanhava desde a manhã. Ela sabia que o bistrô era seu refúgio, o lugar onde podia desaparecer por algumas horas e ser apenas uma garçonete, um rosto entre tantos. Mas, naquele dia, algo se arrastava atrás de seus pensamentos, algo que ela não queria admitir que tinha nome. Miguel.
O som da campainha na porta do bistrô a fez dar um leve pulo, como se tivesse sido chamada de volta ao mundo real. Ela estava absorta em suas tarefas, mas o simples tilintar daquela campainha já a fazia sentir que ele estava ali, como se ele fosse uma presença constante, mesmo quando não estava.
Ele entrou. Como sempre, a sua presença era suave, mas cheia de um algo mais. Miguel tinha uma maneira peculiar de ocupar o espaço, de se fazer notado sem fazer barulho. Clara olhou para ele, e, como sempre, seus olhos se encontraram com os dele por um breve segundo. Não havia mais estranheza naquela troca de olhares. Nada de desconforto. Não era mais uma invasão. Era apenas… uma troca. Silenciosa, mas carregada de significado.
Ele foi direto à mesa que ocupava toda semana. A mesa à janela, onde sempre olhava o movimento da rua e parecia se perder em seus próprios pensamentos. Clara já sabia o que ele pediria antes mesmo que abrisse o cardápio. O café sem açúcar, a fatia de pão com azeite e alecrim. Ela não sabia o que a intrigava mais: o fato de ele ser tão previsível ou o fato de ela começar a memorizar até os pequenos detalhes.
Com o coração acelerado, caminhou até ele, o bloco de anotações em mãos. Quando ele a viu se aproximar, levantou os olhos, e a saudação veio naturalmente.
— Boa noite, Clara. — A voz dele era suave, mas havia algo ali que a fez parar por um segundo antes de responder.
— Boa noite, Miguel. — Ela conseguiu, por fim, sorrir. Um sorriso sutil, mas real. Ele não parecia desconfortável. Ao contrário, havia algo em seu olhar que a fez se sentir, por um instante, como se realmente fosse alguém mais do que uma funcionária. Algo que ela não conseguia entender.
— O de sempre,então? — Perguntou ela, já sabendo a resposta.
— Sim. — Ele sorriu, mas não de maneira forçada. Era um sorriso verdadeiro, simples, como se aquilo fosse natural entre os dois. Ela anotou o pedido sem dizer mais nada, mas sentiu a sua mão tremer levemente quando fechou o bloco. Algo estava mudando, e ela não sabia como reagir.
Ela o deixou sozinho para preparar o café, mas não pôde deixar de olhar para ele do canto dos olhos. Ele estava tão absorto em suas páginas, os olhos fixos nas palavras do livro, que não percebeu quando ela o observava. Clara não sabia o que sentia em relação a ele. Era algo misto. Curiosidade, talvez. Ou medo. Medo do que poderia acontecer se ela permitisse que aquela presença se infiltra-se em sua vida de uma forma mais definitiva.
Enquanto preparava o café na cozinha, sentiu uma estranha sensação de desconexão. Ela estava ali, entre as panelas e os utensílios, mas sua mente parecia flutuar para longe. Para aquele homem. Para os olhos dele que, cada vez mais, pareciam descobrir algo dela que ela própria não sabia que existia.
Quando voltou à mesa, Clara tentou disfarçar a inquietação. Deu o pedido a Miguel, que levantou os olhos do livro e agradeceu. Não havia mais nada a ser dito, nada mais a ser trocado. Ela voltou ao balcão, mas não conseguiu tirar os olhos dele. Ele continuava ali, como sempre, como se fosse uma constante em sua vida. Aquele simples ritual semanal começava a ocupar mais espaço na mente dela, mais do que ela gostaria de admitir.
Naquela noite, depois do expediente, Clara ainda sentia o peso daquela presença. Ela se arrumou para ir para casa, mas algo dentro dela não permitia que se fosse de imediato. Parou em frente ao espelho, olhando para o reflexo. A mulher que via ali não era mais a mesma de antes. Ela já não era aquela figura dura e intransigente que se escondia atrás de um sorriso automático. Não sabia quando isso havia começado, mas sabia que, de alguma forma, Miguel estava envolvido. Ele havia mexido com algo dentro dela. Algo que ela havia enterrado profundamente, mas que agora, parecia estar vindo à tona.
Na manhã seguinte, Clara se pegou pensando em Miguel novamente. A imagem dele sentado naquela mesa, perdido em seu livro, parecia ocupando todo o espaço em sua mente. Mas o que a surpreendeu foi o quanto ela desejava vê-lo novamente. Não era uma paixão arrebatadora, não ainda. Mas era algo novo. Algo que ela não entendia, mas queria explorar.
Aquela sensação de vulnerabilidade a incomodava. Clara nunca se permitira sentir vulnerável. Sempre fora forte, sempre soubera se proteger. Mas agora, era diferente. Miguel não a invadia. Ele não era como os outros. Ele simplesmente existia ali, e, de alguma forma, isso mexia com ela.
Na quarta-feira seguinte, Clara se arrumou com mais cuidado. Usou um vestido simples, mas que a fazia se sentir bem. Nada demais, mas diferente do usual. Quando chegou ao bistrô, sentiu uma tensão no ar. Ele ainda não havia chegado, mas ela já podia sentir a expectativa crescer. A expectativa que ela mesma havia criado sem querer.
Miguel apareceu pontualmente, como sempre. E a troca de olhares, agora, parecia algo natural. Ele foi até a mesa e pediu o mesmo de sempre. Clara não se incomodou mais com a previsibilidade. Ao contrário, sentiu um conforto nisso. Ele não a forçava a se abrir. Ele simplesmente existia ao seu lado.
Dessa vez, enquanto ele folheava o livro, Clara se aproximou mais, quase sem pensar. Quando ele olhou para ela, ele sorriu, um sorriso gentil, e disse:
— Está mais tranquila hoje, Clara. — Aquela observação a pegou de surpresa. Como ele sabia? Como ele notara? Ela não soubera o que responder de imediato, mas, por algum motivo, as palavras dele a acalmaram.
— Talvez seja o bistrô. Ou talvez seja só o fato de estar aqui. — Ela sorriu, mais suave do que o esperado.
A conversa seguiu sem pressa, fluindo entre assuntos triviais, como o tempo e as novidades na cidade. Miguel não parecia apressado para sair, e Clara também não demonstrava pressa para se afastar. Havia algo reconfortante na maneira como as palavras trocadas entre eles pareciam preencher o vazio do bistrô, dando-lhe uma vida peculiar, uma intensidade silenciosa que ela ainda não conseguia compreender completamente.
Quando ele terminou o café e a última fatia de pão, Clara estava mais próxima de si mesma do que se dava conta. Ela não costumava se permitir momentos como aquele, onde se sentia confortável na presença de alguém sem a pressão da máscara que sempre usava. Ela sentia que, de alguma forma, Miguel não a via como todos os outros viam: ele não estava à espera de algo mais de sua parte. Ele simplesmente a via.
— Você tem um sorriso bom, Clara. — Ele disse, sua voz suave, mas com um tom que, de algum modo, parecia sério.
Aquelas palavras a pegaram desprevenida. Clara sentiu suas bochechas esquentarem, e, por um breve momento, não sabia o que responder. Ele estava, sem dúvida, mudando a maneira como ela via a si mesma, como via os outros, como via a vida.
— Acho que você está enganado. — Ela riu, tentando dissipar a tensão que se formara dentro de si. Mas, ao olhar para ele, percebeu que seu sorriso não era apenas um gesto de cortesia. Era genuíno. Algo nela queria acreditar naquelas palavras. Algo em seu interior se permitia ser tocado, mesmo que fosse de forma sutil.
Miguel a observava com uma intensidade serena, como se estivesse realmente interessado no que ela tinha a dizer. Sem palavras exageradas, sem gestos grandiosos, ele simplesmente a via. E, por algum motivo, isso a fazia se sentir mais confortável consigo mesma.
Clara se afastou brevemente para organizar a mesa, deixando o espaço entre ela e Miguel preencher-se de uma quietude confortável. Ela notou que seus próprios sentimentos, antes guardados, estavam começando a se expor mais do que deveria. Ela não queria admitir isso, mas havia uma parte dela que estava começando a ansiar por aqueles momentos, por aquele tempo compartilhado, sem pressa. Com o tempo, suas próprias barreiras pareciam começar a se desfazer, um pouco de cada vez.
Miguel pagou a conta com o mesmo gesto simples de sempre. Quando ele se levantou, Clara notou um pequeno sorriso nas laterais de seus lábios. Não era um sorriso forçado, nem cheio de intenções. Era algo leve, como se ele compartilhasse um segredo consigo mesmo, algo que ela ainda não tinha entendido completamente.
ele já havia saído, deixando a porta bater suavemente atrás de si. Ela ficou por um momento, parada, olhando para a porta que acabara de se fechar atrás dele. A quietude do bistrô parecia mais densa agora. Mesmo com o som ambiente do café, o tilintar ocasional de xícaras e a música baixa tocando ao fundo, ela sentia uma ausência.
Clara suspirou, voltando ao balcão. Pegou o pano e começou a limpar a superfície de mármore, mais por hábito do que por necessidade. A cabeça estava longe. Pela primeira vez em muito tempo, ela não conseguia se concentrar no trabalho. E isso a assustava.
“Você tem um sorriso bom, Clara.”
Era só uma frase. Mas ela se repetia na mente dela como se tivesse sido tatuada ali. O modo como ele a olhava, com aquela serenidade tão incomum, parecia enxergar mais do que ela deixava transparecer.
Mais tarde, enquanto fechava o bistrô, Clara reparou no reflexo no vidro da vitrine. O rosto dela estava diferente. Não pelas feições, mas pela forma como seus olhos pareciam mais vivos. Uma parte dela temia esse tipo de mudança. Ela sabia o quanto poderia se machucar. Mas havia uma parte, pequena ainda, que estava começando a querer arriscar. Talvez, só talvez, ela pudesse se permitir sentir algo de novo.
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Atualizado até capítulo 26
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