Capítulo 3 — A Marca do Umbral

O sol jamais tocava a mansão Vellmont da maneira que tocava o restante da cidade. Mesmo em plena manhã, sombras densas se acumulavam nos vitrais, como se recusassem a ceder à luz. Do lado de fora, os moradores de Valebris continuavam suas rotinas, ignorando — ou fingindo ignorar — o que se escondia por trás dos muros de pedra antiga.

Dentro da mansão, Helena observava a irmã dormir. Isadora estava pálida, os traços antes suaves agora levemente mais afiados, como se o tempo tivesse sido cruel em sua breve ausência do mundo dos vivos.

— Ela ainda não acordou? — perguntou Adrian, surgindo à porta com um cálice de líquido escuro.

— Não desde ontem à noite — respondeu Helena, sem tirar os olhos de Isadora. — Mas a pulseira dela...

Adrian seguiu o olhar de Helena até o pulso da irmã. Havia uma marca nova ali: um símbolo em espiral, envolto em runas. Era como uma tatuagem feita de luz dourada, mas pulsava como carne viva.

— Isso é do Umbral. Um selo de passagem.

— Ela está amaldiçoada?

Adrian balançou a cabeça lentamente.

— Não exatamente. Ela está marcada. Um elo entre este mundo e o outro. Talvez esteja sendo observada. Ou pior... guiada.

Helena se afastou da cama e olhou para Adrian com os olhos cheios de determinação.

— Então vamos descobrir o que é essa marca. Vamos entender e destruir se for necessário.

— Isso pode atrair atenção indesejada. A marca pode reagir.

— Você acha que já não fomos notados? — Ela ergueu o tom. — Um ritual antigo, uma alma arrancada do Umbral... Você mesmo disse: algo escapou junto.

Adrian se calou por um instante, depois assentiu.

— Há alguém que pode nos ajudar. Mas ele não é confiável. Nem um pouco.

— Quem?

— Um exilado. Alguém que já foi parte da Ordem das Veias Ocultas. Um leitor de marcas.

— Onde ele está?

— Nas catacumbas sob a cidade. Onde as igrejas antigas guardavam seus pecados.

Helena pegou seu casaco, prendendo os cabelos em um coque rápido.

— Então vamos. Quanto mais esperarmos, mais risco corremos.

As ruas de Valebris estavam úmidas e silenciosas. O inverno anunciava sua chegada com ventos cortantes e céu de chumbo. A catedral da cidade, uma construção gótica esquecida pelo tempo, ainda mantinha seus vitrais intactos — mas ninguém entrava ali há décadas.

Adrian e Helena desceram pelos fundos do antigo cemitério, passando por mausoléus de mármore e túmulos desfeitos pelo tempo. Um alçapão de ferro os levou a uma escada espiral que descia fundo, o ar se tornando mais pesado a cada degrau.

— Ele mora aqui embaixo? — Helena perguntou, sentindo o cheiro de pedra molhada e ossos antigos.

— Mora não. Sobrevive.

No fim da escada, havia uma sala iluminada por lamparinas a óleo. Livros empilhados, frascos com líquidos vibrantes, e no centro, um homem de cabelos brancos como neve, usando um sobretudo manchado de tinta, sangue e fuligem. Seus olhos, porém, eram vivos — e completamente pretos.

— Adrian Vellmont... — disse o homem, sem se virar. — Pensei que estivesse morto.

— Estou. Mas ainda mais útil do que você.

O homem riu, com um som seco como folhas mortas.

— E quem é a flor ao seu lado?

— Helena.

— Hm. Nome de rainha. E por que está aqui?

Helena mostrou o medalhão e depois a marca no pulso de Isadora, que agora caminhava devagar atrás deles, envolta em um manto escuro. O velho deu um passo à frente, olhos arregalados ao ver a marca.

— O Umbral tocou essa criança. E ela voltou viva. Admirável. Mas perigoso.

— O que significa essa marca? — Helena perguntou.

— Significa que ela é um farol.

— Farol?

— Para o que vive lá. Ela acendeu uma chama. E agora as criaturas do véu virão em busca da luz.

Isadora falou pela primeira vez desde que acordara:

— Eles sussurram quando durmo. Me chamam pelo nome. Prometem liberdade.

O velho a encarou.

— É porque você agora é um entre dois mundos.

Ele foi até uma prateleira e tirou um livro coberto de runas. Abriu em uma página com um símbolo idêntico ao da marca de Isadora.

— Isso é o Olho do Véu. Um selo colocado por uma entidade que não deseja perder sua presa. Você a arrancou dele, e ele... não gostou.

— E como tiramos isso dela? — Helena exigiu.

— Só há uma maneira: completando o ciclo.

— Que ciclo?

O homem fechou o livro com força.

— A criatura virá. E tomará algo em troca. Ou vocês irão até ela... e enfrentarão o que deixaram escapar.

Adrian cruzou os braços.

— Acha que pode nos guiar até o coração do Umbral?

O velho riu.

— Posso abrir a porta. Mas não sei se vocês voltarão.

Helena se aproximou da irmã.

— Vamos fazer isso juntas. Eu prometo que vou te proteger.

Isadora a olhou com os olhos dourados — um brilho estranho reluzia ali, entre gratidão e... algo mais.

— Não posso mais ficar aqui, Lena. As vozes estão ficando mais altas.

O velho tirou um pingente em forma de espelho de um cofre de pedra.

— Isso é um fragmento do Véu. Um reflexo da porta. Se ela meditar diante dele, talvez consiga enxergar o caminho. Mas cuidado: espelhos do Umbral nunca mostram só o que se quer ver.

Helena pegou o espelho, sentindo um frio intenso ao tocá-lo.

— Obrigada.

O velho sorriu, mas havia pena em seus olhos.

— Preparem-se. O Umbral sempre cobra com juros.

Naquela noite, de volta à mansão, Isadora se sentou diante do espelho em um círculo de sal e velas negras. Adrian e Helena observavam em silêncio enquanto a jovem respirava fundo, os olhos fixos no reflexo enevoado.

Por longos minutos, nada aconteceu. Então o espelho brilhou.

— Estão vindo... — Isadora murmurou.

O vidro rachou, liberando uma névoa espessa e escura que preencheu o quarto. Vozes começaram a sussurrar pelos cantos, chamando nomes em línguas perdidas.

De repente, o espelho explodiu, e da névoa surgiu uma criatura. Alta, encapuzada, os olhos como buracos em brasa. A mesma do Umbral.

Adrian se colocou entre elas num movimento rápido, as presas à mostra.

— Ele nos seguiu — disse ele. — Ele deixou parte de si com ela.

A criatura estendeu a mão e apontou para Isadora.

— Devolva.

Helena agarrou a irmã.

— Nunca!

O ser moveu os dedos, e os vidros estilhaçados do espelho começaram a levitar, girando no ar como lâminas.

Adrian avançou. Com um movimento de mãos, invocou um selo de sangue que queimou no ar. As lâminas caíram.

— Volte para o Umbral, demônio. Aqui, você não é soberano.

Mas a criatura apenas sorriu. E então sumiu na névoa, deixando para trás um símbolo queimado no chão: o mesmo da marca de Isadora.

— Ele agora sabe onde estamos — disse Adrian.

— E o que fazemos? — Helena perguntou, o coração disparado.

— Vamos até ele. Selamos esse elo. Destruímos a porta que deixamos entreaberta.

Isadora se levantou.

— Eu vou com vocês.

Helena hesitou.

— Não.

— Eu preciso, Lena. Isso começou comigo. E terminará comigo.

Adrian olhou para as duas. Havia orgulho e preocupação em seu rosto.

— Então vamos reunir o que é necessário. E atravessar a noite.

Enquanto o trio descia novamente à cripta para preparar o próximo ritual, as ruas de Valebris começaram a sentir os primeiros efeitos da abertura do Véu. Morcegos surgiam em bando em pleno dia, animais se escondiam e crianças tinham pesadelos com olhos brilhantes na escuridão.

O mal não esperaria.

E a guerra estava apenas começando.

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