A tempestade chegou com estranha pontualidade. Raios cruzavam o céu de Valebris como garras tentando rasgar o firmamento. A antiga mansão Vellmont, agora reformada e silenciosa, parecia estremecer sob a fúria do trovão.
Helena observava a chuva pela janela do segundo andar. Seus olhos cansados vagavam entre os pingos como se procurassem algo que o mundo não podia oferecer.
— Faz um mês — murmurou ela, traçando círculos com o dedo no vidro embaçado.
Atrás dela, Adrian entrava no quarto com passos contidos. Trazia um livro velho nas mãos, encadernado em couro escuro e com páginas amareladas pelo tempo.
— Achei isso na biblioteca dos Anciãos — disse, depositando o volume sobre a escrivaninha. — “Codex Nox Umbrae.” Um registro de criaturas do Véu. Algumas... como Vaelreth. Outras, mais antigas.
Helena o encarou, arqueando uma sobrancelha.
— Está procurando um novo monstro?
— Estou procurando respostas. E talvez… uma forma de trazê-la de volta.
O silêncio caiu entre os dois como um lençol pesado. Adrian parecia lutar com palavras que não queria pronunciar.
— Você ouviu, não ouviu? — ele perguntou.
— O quê?
— A risada. No vento. Antes do Véu fechar.
Helena desviou o olhar. Seus dedos apertaram o medalhão partido que agora carregava no pescoço.
— Sim. E desde então, ouço sussurros quando acordo. Vozes chamando meu nome.
Adrian sentou-se ao lado dela.
— Talvez ela não tenha se perdido por completo. Talvez parte dela ainda esteja... entre os mundos.
Helena respirou fundo, tentando afastar a esperança perigosa que nascia no peito.
— E se for o Véu tentando nos enganar? Já vimos do que ele é capaz.
— É um risco. Mas se há uma chance, precisamos tentar.
Ela o olhou por um longo tempo.
— Como?
Adrian abriu o Codex. Na penúltima página, havia um símbolo que parecia pulsar com energia residual: três círculos interligados, rodeados por runas que Helena mal conseguia encarar sem sentir náusea.
— Este é o Sigilo do Sussurro. Um ritual de escuta entre os planos. Não permite atravessar, mas pode nos conectar com alguém que esteja preso entre mundos.
— Isso é perigoso, Adrian. Ouvir o que está além do Véu… pode não ser só Isadora que atenda.
— Eu sei. Mas ela se sacrificou para nos salvar. E se há uma chance de alcançá-la, de libertá-la, eu aceito o risco.
Helena apertou os olhos, então assentiu.
— Então vamos fazer isso. Hoje.
À meia-noite, eles se dirigiram à floresta negra atrás da cidade, até uma clareira esquecida onde os druidas da Ordem realizavam rituais proibidos. A chuva cessara, mas o ar estava saturado de eletricidade e presságios.
Adrian desenhou o sigilo no chão com pó de prata e carvão de ossos. Cada linha parecia vibrar com um poder antigo. Helena posicionou quatro velas ao redor do círculo e acendeu-as com fósforos embebidos em óleo de sangue de corvo.
No centro, depositou o medalhão partido.
— Está pronta? — perguntou Adrian.
Helena apenas assentiu. Ambos se ajoelharam frente ao símbolo, mãos unidas, olhos fechados.
Adrian começou a recitar as palavras arcanas do Codex. O vento se ergueu em redemoinhos, assobiando como mil línguas desconhecidas. As velas tremeluziram, mas não se apagaram.
E então, algo respondeu.
Uma voz — fraca, sussurrada, quase engolida pela noite.
“Lena…”
Helena abriu os olhos, o coração batendo como um tambor.
— Isadora?
O vento uivou, e novamente a voz veio, um pouco mais forte:
“Estou aqui… não consigo… ver… vocês…”
Adrian arregalou os olhos.
— Ela está viva. Presa entre os planos.
Helena segurou o medalhão com força.
— Como podemos tirá-la daí?
Mas então, outra voz surgiu. Mais profunda, faminta.
“Ela não é mais só sua…”
As velas explodiram, e uma sombra tomou o centro do círculo, envolvendo o medalhão com garras feitas de névoa viva.
Adrian se lançou para frente, tentando quebrar o sigilo, mas foi lançado para trás por uma força invisível.
Helena gritou.
— ISADORA!
“Ela me viu… e agora, eu a vejo… através de vocês.”
O medalhão começou a levitar, emitindo uma luz púrpura que os cegou por um instante. Quando a claridade cessou, o sigilo havia se desfeito, e o medalhão jazia rachado em mais um ponto.
— Ele a encontrou — murmurou Adrian. — Uma entidade… diferente de Vaelreth, mas do mesmo plano.
Helena caiu de joelhos, ofegante.
— Ela está viva, mas está se perdendo…
— Precisamos encontrar o nome dele. Se o conhecermos, podemos enfrentá-lo. Nomes são poder.
— E onde encontraremos isso?
Adrian respirou fundo, olhando para o céu sem estrelas.
— Teremos que buscar os Esquecidos. Os que sobreviveram ao Véu e enlouqueceram.
— Você está falando do Orfanato de Crowsbury? — Helena sussurrou, com terror nos olhos.
Adrian assentiu.
— Exatamente.
O orfanato abandonado de Crowsbury estava no alto das colinas, envolto por uma neblina permanente e o silêncio dos lugares amaldiçoados. Era dito que, décadas antes, vinte e sete crianças desapareceram em uma única noite, deixando para trás apenas marcas nos espelhos e desenhos feitos com sangue.
Helena e Adrian chegaram ao portão de ferro com tochas nas mãos e estacas escondidas sob os casacos.
— Eu odiava esse lugar quando era criança — Helena confessou. — Sonhava com ele antes mesmo de saber que existia.
Adrian empurrou o portão, que gemeu como um animal moribundo.
— Os sobreviventes da noite dos desaparecimentos… viram algo. E deixaram registros. Os Anciãos enterraram essas informações. Mas se estiverem em algum lugar, é aqui.
O prédio os acolheu com um cheiro de mofo, ferrugem e medo antigo. As paredes estavam cobertas de símbolos apagados e espelhos quebrados. As janelas estavam seladas com tábuas que pareciam ter sido marteladas de dentro para fora.
Eles atravessaram os corredores, ouvindo passos que não pertenciam a nenhum deles. Sussurros seguiam-nos de sala em sala, falando línguas infantis em tons espectrais.
— Aqui — Adrian disse, apontando para a antiga sala da diretora. — Era aqui que os registros eram mantidos.
Eles arrombaram a porta. Dentro, havia uma escrivaninha coberta de trapos. Um quadro negro com anotações tortas. E, no canto mais escuro, uma figura curvada sobre um caderno.
— Quem… está aí? — Helena perguntou, engolindo seco.
A figura ergueu a cabeça. Era uma mulher velha, olhos brancos como leite, pele translúcida. Mas estava viva.
— Estão atrasados — disse ela, sorrindo com lábios secos. — O Véu já os conhece.
— Você é uma das sobreviventes? — Adrian perguntou.
— Fui. Mas parte de mim nunca saiu daqui. Parte de mim ainda está sob os olhos do Cego.
— O Cego? — Helena perguntou. — É ele que está com Isadora?
A mulher assentiu lentamente.
— O Véu é uma prisão de espelhos. Vaelreth era apenas um carcereiro. Mas o Cego… ele é o espelho. Ele vê tudo, e ao ver, molda.
Adrian se aproximou.
— Precisamos do nome dele. O verdadeiro. Aquele que o prende ao plano dele.
A velha sorriu, e cuspiu um dente podre.
— O nome está gravado… em carne.
Ela estendeu o braço e puxou a manga, revelando cicatrizes em forma de runas. Helena se aproximou e desenhou as marcas num pedaço de papel.
— Obrigada — ela disse.
— Cuidado — advertiu a velha. — Dizer o nome é como abrir os olhos de novo. Ele verá vocês. E não deixará de olhar.
Quando saíram da sala, as vozes no orfanato ficaram mais fortes, quase em uníssono. Algo sabia que eles tinham descoberto o segredo.
— Precisamos sair daqui — disse Adrian, guardando o papel no bolso interno.
Mas quando chegaram à porta principal, ela estava trancada. As sombras avançavam pelos corredores. Figuras de crianças deformadas surgiam entre as frestas das tábuas, cantando em uníssono:
"Um, dois, o espelho vai brilhar, três, quatro, não vá olhar…"
Helena sacou a estaca.
— Vamos abrir caminho.
E com fúria e coragem, enfrentaram as criaturas do Véu — pedaços de almas perdidas, moldadas pelos olhos do Cego. Cada golpe, cada estocada, era uma batalha contra a insanidade.
Por fim, conseguiram escapar. O orfanato atrás deles tremeu e desapareceu em meio à neblina.
De volta à mansão, Adrian traçou o nome revelado pelas cicatrizes num círculo de proteção. O sigilo brilhou em vermelho profundo, como se o próprio mundo tremesse ao ouvir aquele som esquecido.
— Nome verdadeiro confirmado — ele disse. — “Azh'kaar, o Cego.”
Helena estremeceu.
— Ele está com minha irmã. E agora… ele sabe que vamos atrás dela.
Adrian a encarou.
— E isso significa que temos uma chance.
Helena segurou a estaca, agora banhada em sangue do Véu.
— Então vamos abrir os olhos dele.
E nas profundezas do Véu, Azh'kaar sorriu.
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Atualizado até capítulo 23
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