Capítulo 5 — O Sussurro Entre os Mundos

A tempestade chegou com estranha pontualidade. Raios cruzavam o céu de Valebris como garras tentando rasgar o firmamento. A antiga mansão Vellmont, agora reformada e silenciosa, parecia estremecer sob a fúria do trovão.

Helena observava a chuva pela janela do segundo andar. Seus olhos cansados vagavam entre os pingos como se procurassem algo que o mundo não podia oferecer.

— Faz um mês — murmurou ela, traçando círculos com o dedo no vidro embaçado.

Atrás dela, Adrian entrava no quarto com passos contidos. Trazia um livro velho nas mãos, encadernado em couro escuro e com páginas amareladas pelo tempo.

— Achei isso na biblioteca dos Anciãos — disse, depositando o volume sobre a escrivaninha. — “Codex Nox Umbrae.” Um registro de criaturas do Véu. Algumas... como Vaelreth. Outras, mais antigas.

Helena o encarou, arqueando uma sobrancelha.

— Está procurando um novo monstro?

— Estou procurando respostas. E talvez… uma forma de trazê-la de volta.

O silêncio caiu entre os dois como um lençol pesado. Adrian parecia lutar com palavras que não queria pronunciar.

— Você ouviu, não ouviu? — ele perguntou.

— O quê?

— A risada. No vento. Antes do Véu fechar.

Helena desviou o olhar. Seus dedos apertaram o medalhão partido que agora carregava no pescoço.

— Sim. E desde então, ouço sussurros quando acordo. Vozes chamando meu nome.

Adrian sentou-se ao lado dela.

— Talvez ela não tenha se perdido por completo. Talvez parte dela ainda esteja... entre os mundos.

Helena respirou fundo, tentando afastar a esperança perigosa que nascia no peito.

— E se for o Véu tentando nos enganar? Já vimos do que ele é capaz.

— É um risco. Mas se há uma chance, precisamos tentar.

Ela o olhou por um longo tempo.

— Como?

Adrian abriu o Codex. Na penúltima página, havia um símbolo que parecia pulsar com energia residual: três círculos interligados, rodeados por runas que Helena mal conseguia encarar sem sentir náusea.

— Este é o Sigilo do Sussurro. Um ritual de escuta entre os planos. Não permite atravessar, mas pode nos conectar com alguém que esteja preso entre mundos.

— Isso é perigoso, Adrian. Ouvir o que está além do Véu… pode não ser só Isadora que atenda.

— Eu sei. Mas ela se sacrificou para nos salvar. E se há uma chance de alcançá-la, de libertá-la, eu aceito o risco.

Helena apertou os olhos, então assentiu.

— Então vamos fazer isso. Hoje.

À meia-noite, eles se dirigiram à floresta negra atrás da cidade, até uma clareira esquecida onde os druidas da Ordem realizavam rituais proibidos. A chuva cessara, mas o ar estava saturado de eletricidade e presságios.

Adrian desenhou o sigilo no chão com pó de prata e carvão de ossos. Cada linha parecia vibrar com um poder antigo. Helena posicionou quatro velas ao redor do círculo e acendeu-as com fósforos embebidos em óleo de sangue de corvo.

No centro, depositou o medalhão partido.

— Está pronta? — perguntou Adrian.

Helena apenas assentiu. Ambos se ajoelharam frente ao símbolo, mãos unidas, olhos fechados.

Adrian começou a recitar as palavras arcanas do Codex. O vento se ergueu em redemoinhos, assobiando como mil línguas desconhecidas. As velas tremeluziram, mas não se apagaram.

E então, algo respondeu.

Uma voz — fraca, sussurrada, quase engolida pela noite.

“Lena…”

Helena abriu os olhos, o coração batendo como um tambor.

— Isadora?

O vento uivou, e novamente a voz veio, um pouco mais forte:

“Estou aqui… não consigo… ver… vocês…”

Adrian arregalou os olhos.

— Ela está viva. Presa entre os planos.

Helena segurou o medalhão com força.

— Como podemos tirá-la daí?

Mas então, outra voz surgiu. Mais profunda, faminta.

“Ela não é mais só sua…”

As velas explodiram, e uma sombra tomou o centro do círculo, envolvendo o medalhão com garras feitas de névoa viva.

Adrian se lançou para frente, tentando quebrar o sigilo, mas foi lançado para trás por uma força invisível.

Helena gritou.

— ISADORA!

“Ela me viu… e agora, eu a vejo… através de vocês.”

O medalhão começou a levitar, emitindo uma luz púrpura que os cegou por um instante. Quando a claridade cessou, o sigilo havia se desfeito, e o medalhão jazia rachado em mais um ponto.

— Ele a encontrou — murmurou Adrian. — Uma entidade… diferente de Vaelreth, mas do mesmo plano.

Helena caiu de joelhos, ofegante.

— Ela está viva, mas está se perdendo…

— Precisamos encontrar o nome dele. Se o conhecermos, podemos enfrentá-lo. Nomes são poder.

— E onde encontraremos isso?

Adrian respirou fundo, olhando para o céu sem estrelas.

— Teremos que buscar os Esquecidos. Os que sobreviveram ao Véu e enlouqueceram.

— Você está falando do Orfanato de Crowsbury? — Helena sussurrou, com terror nos olhos.

Adrian assentiu.

— Exatamente.

O orfanato abandonado de Crowsbury estava no alto das colinas, envolto por uma neblina permanente e o silêncio dos lugares amaldiçoados. Era dito que, décadas antes, vinte e sete crianças desapareceram em uma única noite, deixando para trás apenas marcas nos espelhos e desenhos feitos com sangue.

Helena e Adrian chegaram ao portão de ferro com tochas nas mãos e estacas escondidas sob os casacos.

— Eu odiava esse lugar quando era criança — Helena confessou. — Sonhava com ele antes mesmo de saber que existia.

Adrian empurrou o portão, que gemeu como um animal moribundo.

— Os sobreviventes da noite dos desaparecimentos… viram algo. E deixaram registros. Os Anciãos enterraram essas informações. Mas se estiverem em algum lugar, é aqui.

O prédio os acolheu com um cheiro de mofo, ferrugem e medo antigo. As paredes estavam cobertas de símbolos apagados e espelhos quebrados. As janelas estavam seladas com tábuas que pareciam ter sido marteladas de dentro para fora.

Eles atravessaram os corredores, ouvindo passos que não pertenciam a nenhum deles. Sussurros seguiam-nos de sala em sala, falando línguas infantis em tons espectrais.

— Aqui — Adrian disse, apontando para a antiga sala da diretora. — Era aqui que os registros eram mantidos.

Eles arrombaram a porta. Dentro, havia uma escrivaninha coberta de trapos. Um quadro negro com anotações tortas. E, no canto mais escuro, uma figura curvada sobre um caderno.

— Quem… está aí? — Helena perguntou, engolindo seco.

A figura ergueu a cabeça. Era uma mulher velha, olhos brancos como leite, pele translúcida. Mas estava viva.

— Estão atrasados — disse ela, sorrindo com lábios secos. — O Véu já os conhece.

— Você é uma das sobreviventes? — Adrian perguntou.

— Fui. Mas parte de mim nunca saiu daqui. Parte de mim ainda está sob os olhos do Cego.

— O Cego? — Helena perguntou. — É ele que está com Isadora?

A mulher assentiu lentamente.

— O Véu é uma prisão de espelhos. Vaelreth era apenas um carcereiro. Mas o Cego… ele é o espelho. Ele vê tudo, e ao ver, molda.

Adrian se aproximou.

— Precisamos do nome dele. O verdadeiro. Aquele que o prende ao plano dele.

A velha sorriu, e cuspiu um dente podre.

— O nome está gravado… em carne.

Ela estendeu o braço e puxou a manga, revelando cicatrizes em forma de runas. Helena se aproximou e desenhou as marcas num pedaço de papel.

— Obrigada — ela disse.

— Cuidado — advertiu a velha. — Dizer o nome é como abrir os olhos de novo. Ele verá vocês. E não deixará de olhar.

Quando saíram da sala, as vozes no orfanato ficaram mais fortes, quase em uníssono. Algo sabia que eles tinham descoberto o segredo.

— Precisamos sair daqui — disse Adrian, guardando o papel no bolso interno.

Mas quando chegaram à porta principal, ela estava trancada. As sombras avançavam pelos corredores. Figuras de crianças deformadas surgiam entre as frestas das tábuas, cantando em uníssono:

"Um, dois, o espelho vai brilhar, três, quatro, não vá olhar…"

Helena sacou a estaca.

— Vamos abrir caminho.

E com fúria e coragem, enfrentaram as criaturas do Véu — pedaços de almas perdidas, moldadas pelos olhos do Cego. Cada golpe, cada estocada, era uma batalha contra a insanidade.

Por fim, conseguiram escapar. O orfanato atrás deles tremeu e desapareceu em meio à neblina.

De volta à mansão, Adrian traçou o nome revelado pelas cicatrizes num círculo de proteção. O sigilo brilhou em vermelho profundo, como se o próprio mundo tremesse ao ouvir aquele som esquecido.

— Nome verdadeiro confirmado — ele disse. — “Azh'kaar, o Cego.”

Helena estremeceu.

— Ele está com minha irmã. E agora… ele sabe que vamos atrás dela.

Adrian a encarou.

— E isso significa que temos uma chance.

Helena segurou a estaca, agora banhada em sangue do Véu.

— Então vamos abrir os olhos dele.

E nas profundezas do Véu, Azh'kaar sorriu.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!