uma festa

Capítulo 5 – Sob Luzes Quentes

O anúncio veio por e-mail naquela manhã: “Confraternização de meio de ano – Todos estão convidados! Sexta-feira, às 19h, no terraço do hospital. Música, comida e celebração pelos bons resultados do semestre. Traje informal.”

Sarah leu a mensagem enquanto tomava café no refeitório. Um grupo de residentes já comentava empolgado, especulando o cardápio, se haveria bebida, quem iria dançar com quem. Mas ela só conseguia pensar em uma coisa — ou melhor, em uma pessoa.

Clara.

A doutora Valente, sempre impecável, distante, intransponível... numa confraternização informal?

Imaginá-la fora do jaleco, talvez com uma taça na mão, era ao mesmo tempo intrigante e perigoso.

**

Na sexta-feira, o hospital funcionava em ritmo diferente. Plantonistas estavam avisando que trocariam os turnos mais cedo, técnicos riam nos corredores, e até os médicos pareciam menos apressados.

Sarah terminou o plantão às 18h e foi até o vestiário. Trocou o uniforme por um vestido simples, de tecido leve e cor neutra. Prendeu o cabelo com uma presilha discreta. Queria estar bonita, mas não chamar atenção. Queria parecer natural, mesmo que o coração estivesse acelerado desde o meio da tarde.

No terraço, luzes amarelas pendiam como fios de estrelas, decorando o espaço com um charme quase acolhedor. Mesas de madeira, bancos acolchoados, um pequeno palco com música ambiente ao vivo — sax e violão. As pessoas conversavam em grupos animados, e a cidade lá embaixo piscava com seus milhares de faróis.

Sarah pegou uma taça de vinho branco e se posicionou num canto mais afastado, observando.

Foi então que Clara chegou.

Calça jeans escura, blusa vinho de manga três quartos, cabelos soltos, maquiagem leve. Nada na sua aparência gritava por atenção, mas ainda assim ela parecia dominar o espaço. Como sempre. Como se tudo ao redor desacelerasse só para acompanhá-la.

Os olhares se voltaram. Não era só Sarah quem notava. Mas Clara parecia alheia a tudo, cumprimentando colegas com discrição, aceitando uma taça de espumante, mantendo o sorriso reservado.

Até que os olhos delas se cruzaram.

Por um segundo, a festa pareceu sumir. O som ao fundo se abafou, as conversas desapareceram. Só havia Clara. E aquele olhar.

Clara caminhou lentamente até ela.

— Você veio. — disse, com um meio sorriso.

— Achei que ia ser bom ver todo mundo fora do ambiente clínico. — Sarah respondeu, sem baixar os olhos.

— Concordo. A tensão fica do lado de dentro, por uma noite.

Ficaram em silêncio por alguns segundos, observando o entorno.

— Está bonita. — Clara disse, enfim. Baixo. Quase como se não quisesse dizer.

Sarah sorriu de lado.

— Você também. Diferente. Mas ainda... você.

Clara soltou uma risada leve, e Sarah viu pela primeira vez o que talvez fosse o verdadeiro rosto dela: sem jaleco, sem a armadura. Apenas Clara.

— Quer dar uma volta? — perguntou.

Sarah assentiu.

Elas se afastaram um pouco do centro da festa, caminhando pela lateral do terraço, onde as luzes eram mais suaves e o barulho mais distante. Ficaram encostadas na mureta, vendo a cidade ao longe.

— Pensei muitas vezes naquela noite. — Clara disse, sem olhar diretamente para ela. — Mais do que deveria.

Sarah não respondeu. Apenas encostou o braço ao dela, de leve. Um gesto mínimo. Mas que dizia tudo.

— Eu ainda penso. — disse, enfim.

Clara virou o rosto para ela. Estavam tão próximas que o ar parecia mais denso ali.

— Eu tenho medo, Sarah. Não de você. De mim. Do que isso pode me fazer perder.

— E se for algo que você ganha? — Sarah perguntou, num sussurro.

Clara não respondeu com palavras. Mas o modo como seus olhos buscaram os de Sarah, como se procurassem uma permissão silenciosa, foi resposta o suficiente.

A música lá dentro mudou. Agora era uma versão lenta de “La vie en rose”. O sax ecoava como se embalasse um segredo.

Sarah estendeu a mão.

— Dança comigo?

Clara hesitou por um segundo. Depois aceitou.

E ali, sob as luzes quentes e os olhos alheios demais para notar, elas dançaram pela primeira vez. Sem máscaras. Sem jalecos. Apenas duas mulheres tentando descobrir se havia, entre elas, espaço para algo que não coubesse mais ser negado.

A música oscilava entre o animado e o suave, mas nada parecia mais intenso do que o silêncio que envolvia Clara e Sarah no canto do terraço. Elas continuavam dançando devagar, e, a cada passo, pareciam se aproximar não só fisicamente, mas como se algo entre elas estivesse prestes a se romper — ou se revelar.

O braço de Sarah envolvia a cintura de Clara com leveza, mas firme o bastante para que ela sentisse o calor do toque mesmo por cima do tecido. Clara mantinha uma das mãos no ombro de Sarah, a outra na dela. Os olhos raramente se encontravam por muito tempo. Quando aconteciam, se perdiam em evasivas — como se qualquer contato mais longo pudesse causar um incêndio.

— Acredita que eu detesto dançar? — Clara murmurou, com um meio sorriso.

— Eu sei. Está escrita a sua resistência em cada músculo do seu corpo. — Sarah provocou, com um tom leve.

— E ainda assim aceitei. — Clara rebateu, arqueando uma sobrancelha.

— Porque quis.

Clara estreitou os olhos, mas o sorriso denunciava que ela não conseguia mais manter a postura inatingível de sempre.

— Você sempre teve essa mania de dizer as coisas sem rodeios.

— Só quando quero muito alguma coisa. — Sarah disse, agora olhando direto para ela.

Clara parou. Os movimentos cessaram, mas suas mãos continuavam no lugar. O rosto de Sarah a poucos centímetros. As respirações, sincronizadas e aceleradas.

— Isso aqui é loucura. — Clara disse, num sussurro, a voz rouca.

— Então por que ainda estamos aqui?

Clara não respondeu. Seus olhos desceram até a boca de Sarah, num deslize que não conseguiu conter. E, naquele instante, tudo em volta perdeu o foco — a música, as vozes, os risos ao longe. Havia apenas elas. E o segundo exato antes do impulso se tornar ação.

Sarah inclinou-se. Um milímetro de coragem a mais e o beijo aconteceria. Um milímetro.

Mas a realidade veio como um estalo.

— Doutora Valente! — alguém chamou ao fundo, e o som pareceu quebrar o ar entre elas.

Clara recuou um passo. Rápido. Quase como se tivesse voltado para o próprio corpo depois de um breve transe. Passou a mão no cabelo, tentando recuperar o controle.

Sarah suspirou, frustrada, mas não surpresa.

Um residente se aproximava, pedindo alguma opinião sobre um caso que estava sendo discutido com outro médico ali na festa. Clara agradeceu, retomando o semblante sóbrio e profissional. Como se nada tivesse acontecido. Como se não estivesse prestes a se deixar beijar.

— Sarah... — ela começou, depois que o residente se afastou de novo.

— Não precisa. — Sarah interrompeu, com um meio sorriso. — Eu entendi.

— Não é sobre não querer. — Clara murmurou, sem conseguir olhar nos olhos dela. — É sobre... não poder..

— Eu espero. — Sarah disse, com suavidade, antes de se afastar lentamente.

Mas mesmo enquanto saía, Clara não conseguiu tirar os olhos dela. E soube, com um peso quase físico no peito, que aquilo não ia desaparecer. Aquilo estava crescendo. E já não cabia mais no espaço entre o profissional e o pessoal.

Era só uma questão de tempo até transbordar.

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Comments

Maria Andrade

Maria Andrade

que história estou amando

2025-04-20

1

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