Capítulo 3 – Fraturas Invisíveis
A chuva caía fina sobre a cidade quando Sarah deixou o hospital naquela noite. A água fria batia em seu rosto como uma forma silenciosa de lembrá-la: respire, mantenha o foco. Mas por dentro, tudo nela estava agitado. Não pela cirurgia em si — ela sabia que havia se saído bem —, mas pela presença de Clara. Pela forma como os olhos da médica pareciam atravessar qualquer armadura que ela tentasse vestir.
Sarah seguiu até o ponto de ônibus. Não quis pedir carona, não quis chamar um carro. Precisava do tempo no trajeto para processar. Os olhos de Clara. A voz firme. A tensão invisível que parecia envolver cada centímetro das duas sempre que estavam próximas.
No apartamento modesto que dividia com uma amiga da faculdade, trancou-se no quarto. Trocou o jaleco por um moletom largo e sentou-se na beira da cama, observando as mãos ainda levemente trêmulas. Por mais que tentasse manter o profissionalismo, a verdade era que ver Clara ali, liderando com tanta precisão e firmeza, a deixava... desconcertada.
Mas havia mais. Um passado que insistia em sussurrar, mesmo em meio ao barulho dos monitores e bisturis. Um passado que envolvia uma noite — ou talvez só um instante — que ambas fingiram esquecer.
**
Clara, por outro lado, não conseguia dormir.
O chuveiro quente não aliviava a tensão dos músculos nem a inquietação no peito. Caminhava pelo apartamento silencioso como se procurasse alguma resposta escondida entre os móveis. O rosto de Sarah voltava em flashes: os olhos atentos por trás da máscara, a precisão cirúrgica, a compostura quase irritante. E, acima de tudo, o fato de ela ter mantido o controle — enquanto Clara quase perdeu o dela.
Sentia raiva de si mesma por estar tão afetada. Raiva por não conseguir ignorar. Mas havia algo em Sarah que mexia com tudo nela — algo que nunca deixara de existir, mesmo quando Clara tentou enterrar.
Abriu a gaveta da escrivaninha. Lá dentro, uma antiga foto caída por acaso entre papéis. Uma lembrança de anos antes. Riu, amarga.
"Você sabia quem eu era desde o começo, não é, Sarah?", murmurou para o vazio.
Mas Sarah não tinha dito nada. Não tinha usado aquilo. Estava ali, fazendo o que devia — melhor do que muitos outros.
Isso a desarmava mais do que qualquer coisa.
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No dia seguinte, no hospital, as duas se encontraram no corredor que levava à sala de reuniões. O habitual "bom dia" foi trocado com um aceno contido. Era como se estivessem tentando reaprender a andar por aquele território minado.
Durante a apresentação de casos, Clara falou pouco, apenas o essencial. Mas seus olhos encontravam os de Sarah de vez em quando. E ali, mesmo em silêncio, havia algo acontecendo.
Um campo de batalha. Um território de memória. Uma linha tênue que dividia ética e desejo, passado e presente.
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Na pausa para o almoço, enquanto Sarah tomava café na copa, Clara apareceu.
— Preciso conversar com você. — disse, com a mesma voz controlada de sempre, mas os olhos mais intensos.
Sarah largou a xícara lentamente.
— Agora?
— Sim. Cinco minutos. — Clara virou-se e saiu, esperando que ela a seguisse.
Sarah hesitou por dois segundos. Então foi atrás.
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A sala de descanso estava vazia.
— Olha, eu não sei o que você pensa sobre o que houve... — Clara começou, os braços cruzados, como se tentasse se proteger das próprias palavras. — Mas precisamos deixar claro: aqui, somos médica e estagiária. Nada além disso.
Sarah assentiu, mas seus olhos estavam firmes.
— Tudo bem. Eu nunca tentei ultrapassar essa linha.
— Ótimo. — Clara desviou o olhar, desconfortável.
— Mas se isso está te incomodando tanto... talvez não seja só sobre mim.
Clara engoliu em seco.
Silêncio.
— Você é boa no que faz. E isso me obriga a manter você por perto. — confessou, num sopro.
Sarah deu um meio sorriso.
— Então vamos fazer dar certo. Só isso.
E saiu, deixando Clara sozinha — no silêncio que, mais uma vez, parecia dizer mais do que qualquer palavra.
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Atualizado até capítulo 35
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