Capítulo 2 – Sob a Pele
O hospital parecia mais silencioso naquela manhã. Ou talvez fosse apenas Clara tentando ouvir qualquer coisa que não fosse o som dos próprios pensamentos.
Estava no centro cirúrgico, pronta para avaliar um caso complexo — um aneurisma cerebral prestes a romper, com riscos altíssimos de comprometimento motor. O tipo de situação que exigia precisão, sangue frio e uma equipe completamente sincronizada.
Ao seu lado, o residente mais experiente. Enfermeiras de confiança. E, conforme a porta se abriu com o ranger leve das dobradiças, ela entrou.
Sarah.
O jaleco impecável, o cabelo preso em um coque prático, os olhos atentos, prontos.
Clara não precisou dizer nada. O coordenador do estágio cirúrgico já havia feito o sorteio: Sarah estaria ao lado dela na cirurgia. Por uma semana inteira. Observando, aprendendo. Participando — sob supervisão direta.
A ironia do destino não passou despercebida.
— Estagiária Diniz, lave-se e prepare-se. — Clara disse, com o tom controlado de sempre. Mas algo na voz parecia mais cortante que o bisturi esterilizado ao seu lado.
Sarah apenas assentiu, mantendo o profissionalismo como um escudo. Mas o olhar era firme. Não de desafio — de resistência.
Minutos depois, dentro do centro cirúrgico, elas estavam lado a lado. Máscaras cobrindo os rostos, apenas os olhos visíveis.
— Artéria comunicante anterior. Bem próxima do quiasma óptico. — Clara murmurou, como quem pensa alto. — Um erro de milímetros e a paciente perde a visão.
— Entendido. — respondeu Sarah, já acompanhando os movimentos com precisão.
A cirurgia começou. Clara dominava o campo como se fosse uma extensão do próprio corpo. Mas, naquele dia, algo a desconcentrava. O fato de Sarah conhecer seu segredo. O fato de Clara ter desejado aquela mulher sem saber que era ela. E, agora, ali, tão próxima, suas mãos quase se tocando por cima do corpo anestesiado da paciente... o ar parecia denso.
— Preciso de mais exposição do campo. — Clara disse.
Sarah ajustou os afastadores com delicadeza.
— Assim?
Clara olhou, surpresa. Estava perfeito. Quase como se Sarah soubesse o que ela precisava antes mesmo de pedir.
A cirurgia seguiu, tensa. Clara deu instruções. Sarah seguiu cada uma com exatidão. Era como se, por baixo das máscaras, houvesse um diálogo maior acontecendo. Uma dança silenciosa. As mãos falavam o que as bocas não podiam.
Duas horas depois, o aneurisma estava clipado. A paciente, estável. A equipe aliviada.
Clara retirou as luvas e a máscara, exausta. Sarah fez o mesmo. Por um segundo, ficaram frente a frente, sozinhas na antessala de recuperação, lavando as mãos lado a lado.
— Você foi precisa. — Clara disse, sem olhá-la.
— Eu presto atenção. — Sarah respondeu, sem arrogância.
— Percebi.
O silêncio caiu entre elas como uma respiração contida.
— Doutora Valente... — Sarah começou, hesitante. — Eu sei que é complicado. Mas... se você preferir que eu seja removida da sua supervisão, posso pedir.
Clara a olhou, finalmente. Longamente. Como se pesasse mil possibilidades em um segundo.
— Não. Você é boa. E isso é o que importa aqui.
Sarah assentiu, surpresa com a resposta. Mas não disse nada.
Ambas sabiam que aquele era só o começo.
Elas estavam mergulhadas em uma relação com fronteiras frágeis, onde qualquer passo em falso podia custar muito. Mas havia algo inevitável se formando, ou talvez apenas retornando à superfície. Algo antigo, enterrado e vivo.
E enquanto vestiam seus jalecos de volta, cada uma carregava no peito o mesmo dilema:
Até onde é possível fingir que nada está acontecendo... quando tudo dentro de você está pedindo para acontecer?
continua
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Atualizado até capítulo 35
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