Sessão Dois: A Máscara de Clara

Capítulo 4

Sessão Dois: A Máscara de Clara

(Flashback)

O relógio digital no consultório marcava 16h15 quando Clara entrou, arrastando os pés e segurando a bolsa contra o peito como um escudo. A luz da tarde filtrava-se pelas persianas, projetando linhas douradas sobre as paredes cobertas de livros. Fátima, sentada em sua poltrona favorita, ergueu os olhos do bloco de notas e sorriu com delicadeza.

— Olá, Clara. Pode se acomodar como preferir — disse, apontando para o divã ou para a cadeira ao lado da janela.

Clara hesitou, os olhos fugindo do contato visual, antes de escolher a cadeira, posicionando-se de modo a ver parte do jardim através do vidro. Sua postura era tensa, o maxilar travado, as mãos inquietas a mexerem na alça da bolsa.

— Como você está hoje? — perguntou Fátima, com voz serena.

— Um pouco melhor, acho… — murmurou Clara, mas a voz traía a ansiedade. — Não consegui dormir direito. Fico pensando nas mesmas coisas, sabe? Como se minha cabeça nunca desligasse.

Fátima fez anotações rápidas, observando o padrão de evasivas e o nervosismo crescente. Sabia que Clara vinha carregando um peso invisível, algo que não conseguia nomear nem para si mesma.

— Você contou na última sessão sobre os sonhos recorrentes. Acha que consegue falar um pouco mais sobre eles hoje?

Clara hesitou mais uma vez, mordeu o lábio inferior, e desviou o olhar para fora. O silêncio prolongou-se, mas Fátima não apressou. Sabia que, muitas vezes, o tempo do paciente não era igual ao tempo do relógio.

— Sonhei de novo com aquela casa — começou, finalmente. — Só que, desta vez, estava escuro. Eu entrava, mas não conseguia achar ninguém. Tinha cheiro de queimado… e ouvia risadas de crianças. Mas não eram risadas felizes; eram estranhas, como se zombassem de mim.

Fátima anotou: “casa escura, cheiro de queimado, risadas distorcidas”. O padrão dos sonhos de Clara ficava cada vez mais nítido—elementos de insegurança, culpa, medo de exposição.

— Já conversamos sobre a importância de tentar identificar as sensações do sonho. O que você sentia quando ouvia essas risadas, Clara?

Ela respirou fundo, apertando ainda mais a bolsa.

— Vergonha. Como se tivessem descoberto algo sobre mim. Como se eu estivesse… exposta.

Fátima percebeu que havia ali um ponto de ruptura. Decidiu abordar com suavidade.

— Às vezes, nossos sonhos falam sobre o que tentamos esconder de nós mesmos. Não precisa me contar tudo agora, mas gostaria de saber: você lembra de algum momento, na infância ou adolescência, em que se sentiu assim? Observada, julgada, ou com medo de ser descoberta?

Clara demorou a responder. O relógio parecia avançar mais devagar. Por fim, ela murmurou:

— Tem uma coisa da escola. Um segredo. Eu nunca contei pra ninguém… Tenho medo de as pessoas me odiarem se souberem.

Fátima inclinou-se um pouco, demonstrando empatia.

— Você não precisa contar se não se sentir pronta. Mas lembre-se: aqui, não existe julgamento. Só compreensão. Guardar segredos pode ser muito mais doloroso do que compartilhá-los.

Clara olhou para Fátima, os olhos marejados. Fez menção de falar, mas desistiu. Apenas sussurrou:

— Eu machuquei alguém. Foi sem querer, mas… Depois disso, comecei a usar uma “máscara”. Nem sei mais quem sou de verdade.

A psicóloga fez anotações detalhadas: “evento traumático não revelado, culpa, dissociação de identidade, necessidade de aprovação social.” Era um perfil comum em quadros de ansiedade e depressão, mas também podia estar ligado a traumas mais profundos.

— Clara, você se lembra de quem era essa pessoa?

A paciente balançou a cabeça. — Não. Eu lembro do grito, do barulho de vidro quebrando… e do cheiro de queimado de novo. Depois, tudo ficou branco. Quando acordei, estava na enfermaria da escola, e ninguém me explicou o que tinha acontecido.

Fátima foi anotando: “amnésia dissociativa? Evento traumático? Cheiro de queimado recorrente.” E então, num lampejo, lembrou-se de outros relatos semelhantes: crianças desaparecidas, eventos estranhos, memórias partidas. O cheiro de queimado parecia uma constante, assim como as risadas distorcidas.

— Você já ouviu falar de uma menina chamada Bianca? — perguntou Fátima, testando a reação de Clara.

A paciente empalideceu, os olhos arregalados.

— Bianca… — sussurrou. — Acho que sim. Ela… sumiu, não foi?

Fátima assentiu.

— Às vezes, nossas memórias se cruzam com histórias de outras pessoas. Se algum dia você lembrar de mais algum detalhe, não hesite em me contar. Pode ser importante, não só pra você, mas pra outras pessoas também.

Clara assentiu, visivelmente abalada. Fátima encerrou a sessão com exercícios de respiração, pedindo que Clara anotasse qualquer lembrança ou sonho nos próximos dias. Depois que a paciente saiu, a psicóloga revisitou suas anotações, conectando pontos entre sonhos, memórias e eventos traumáticos não resolvidos.

Pegou o gravador e registrou: “Sessão com Clara. Relatos de culpa, dissociação, cheiro de queimado e risadas recorrentes. Possível envolvimento indireto com evento traumático coletivo. Cruzamento com caso Bianca. Investigar ligação entre pacientes e desaparecimentos.”

Fátima sabia que estava se aproximando de algo incômodo e perigoso. A cada nova sessão, o mosaico de lembranças e segredos se tornava mais complexo—e ela sentia, pela primeira vez, que talvez fosse impossível proteger todos os envolvidos.

Ao sair do consultório naquela tarde, Fátima sentiu um peso no peito. Sabia que, ao buscar a verdade por trás das máscaras de seus pacientes, corria o risco de também retirar a sua própria—e talvez descobrir segredos para os quais ninguém estava preparado.

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