Capítulo 2
Sessão Um: As Sombras de Daniel
(Flashback)
O relógio de parede da sala de atendimento marcava 18h07 quando Daniel entrou, os ombros caídos, os olhos fugidios. O ambiente era aquecido pelo abajur ao lado do divã e pelo aroma sutil de camomila. Fátima Drummond, como sempre, aguardava sentada em sua poltrona de couro, bloco de anotações à mão, os gestos tranquilos de quem sabia lidar com a dor alheia.
Daniel hesitou antes de fechar a porta, como se temesse deixar para trás alguma parte de si mesmo, ou talvez alguma sombra insistente que o perseguia. Era a terceira sessão, e o desconforto inicial ainda pairava no ar, mesmo que ele tentasse disfarçar com sorrisos tímidos e respostas monossilábicas.
— Boa noite, Daniel. — A voz de Fátima era firme, mas acolhedora. — Sinta-se à vontade. Quer um chá?
Ele balançou a cabeça, negando. Sentou-se na ponta do divã, as mãos inquietas sobre os joelhos.
— Vamos começar de onde paramos na última vez? — sugeriu ela, folheando as anotações. — Você disse que, às vezes, sente que esqueceu algo importante da infância. Que há lacunas nos seus primeiros anos.
Daniel evitou o olhar da psicóloga. Fixou-se no tapete persa, num padrão de linhas que pareciam não levar a lugar algum.
— Eu… não sei. Sempre achei que era normal esquecer as coisas, sabe? Mas tem sonhos que voltam. Pesadelos. E… sinto falta de alguém. Um rosto, talvez. Às vezes, ouço risadas de crianças, mas não consigo ver quem são.
Fátima anotou em silêncio, observando cada nuance do relato. Não era raro pacientes relatarem sensações vagas, ecos de traumas ou eventos reprimidos. O desafio era encontrar o fio que ligava as lembranças dispersas.
— Você se lembra de algum momento específico em que sentiu medo quando era criança?
Daniel respirou fundo. O silêncio se alongou, pontuado apenas pelo tique-taque do relógio.
— Teve uma vez… Eu devia ter uns seis anos. Estava no quintal da casa da minha avó. Era fim de tarde. Lembro de estar brincando com uma menina, mas não lembro quem era. De repente, tudo ficou escuro, e comecei a chorar. Depois, minha mãe veio me buscar, e nunca mais voltei lá.
Fátima percebeu que o relato era fragmentado, quase como se Daniel temesse que lembrar fosse mais doloroso do que esquecer. Ela decidiu conduzi-lo com delicadeza.
— Daniel, você confia em mim? — perguntou, olhando-o nos olhos. — Gostaria de tentar um breve exercício de relaxamento, para ver se conseguimos acessar essas lembranças de forma segura?
Ele hesitou, mas acabou assentindo.
Fátima pediu que ele fechasse os olhos e respirasse fundo, guiando-o por uma visualização: a luz suave entrando pela janela, o corpo relaxando, a mente segura para viajar ao passado. Com voz baixa, sugeriu que Daniel se imaginasse novamente no quintal da avó, sentindo o cheiro da terra, ouvindo o canto dos pássaros, o calor do sol no rosto.
— Você vê a menina, Daniel? Consegue se lembrar do rosto dela?
Um leve tremor percorreu o corpo do paciente. Por um instante, ele pareceu resistir, mas logo as palavras vieram baixas, quase um sussurro.
— Ela tinha cabelos claros… estava com um vestido amarelo. Acho que… ela me chamava para brincar de esconde-esconde.
— Como você se sentia perto dela?
— Feliz… mas, de repente, veio um medo. Alguém gritou, uma porta bateu. Senti vontade de correr. Depois, ficou tudo escuro.
Fátima fez uma pausa. Notou que Daniel apertava as mãos com força, os nós dos dedos esbranquiçados.
— Está tudo bem, Daniel. Você está seguro aqui. Conte-me o que acontece depois disso, se conseguir.
O paciente respirou fundo. Uma lágrima escorreu silenciosa.
— Eu não lembro… Só sei que acordei na minha cama, minha mãe estava chorando. Ela não queria falar sobre o que aconteceu. Nunca mais voltei à casa da minha avó, e nunca mais vi aquela menina.
A psicóloga terminou o exercício e pediu a Daniel que abrisse os olhos. Ele parecia esgotado, mas havia também um alívio tênue em seu rosto.
— Às vezes, Daniel, nossa mente tenta nos proteger do que dói demais. Mas as memórias encontram formas de retornar, mesmo que camufladas em sonhos ou sensações.
Ela fez anotações rápidas: “menina loira, vestido amarelo, evento traumático, mãe omissa, sensação de culpa/medo”. E acrescentou, em letras menores: “Investigar possíveis ligações com casos de desaparecimento. Relato semelhante ao caso Bianca Reis?”
O restante da sessão foi dedicado a técnicas de respiração e relaxamento. Daniel saiu da sala com passos lentos, mas prometeu voltar na semana seguinte.
Quando a porta se fechou, Fátima permaneceu sentada por alguns minutos, os olhos fixos nas anotações. Pegou o gravador de voz, apertou o botão vermelho e registrou: “Sessão três com Daniel. Suspeito de trauma reprimido envolvendo outra criança. Padrão semelhante a outros relatos colhidos. Possível conexão com o desaparecimento de Bianca Reis?”
Guardou o gravador na gaveta trancada, junto com outros arquivos confidenciais. Sabia que estava se aproximando de algo perigoso—um padrão de segredos entrelaçados, que poderia explicar não só o sofrimento dos pacientes, mas talvez algo muito maior, algo que agora a ameaçava.
Naquela noite, Fátima deixou o consultório mais tarde do que o habitual. Ao sair, olhou para a rua vazia e teve a estranha sensação de estar sendo observada. O vento frio balançou as árvores, e uma sombra pareceu se mover na esquina. Fátima apertou o passo, sem saber que, ao desvendar as memórias de seus pacientes, também estava abrindo portas para perigos que prefeririam permanecer trancados.
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Atualizado até capítulo 24
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