Ecos de Infância

Capítulo 3

Ecos de Infância

(Presente)

O caminho de volta para casa foi percorrido em silêncio, com o rádio desligado e os pneus deslizando sobre o asfalto molhado. Júlia segurava o volante com força, os dedos dormentes. O rosto de Fátima, imóvel entre as fitas da perícia, não lhe saía da cabeça. Mais do que isso, era o nome de Bianca, inesperadamente misturado aos registros da psicóloga, que reverberava como um eco surdo a cada batida do coração.

Ao cruzar o portão do pequeno apartamento no centro, Júlia percebeu que seu corpo estava no piloto automático. Jogou a bolsa no sofá, tirou os sapatos e foi direto ao banheiro, onde lavou o rosto três vezes, como se pudesse apagar as imagens do início daquele dia. Mas as perguntas persistiam, afiadas como cacos de vidro: quem teria matado Fátima? O que ela teria descoberto? E por que, tantos anos depois, o nome de Bianca ainda voltava à tona?

Na cozinha, preparou um café forte e se sentou diante do laptop, abrindo vários arquivos antigos sobre o desaparecimento da irmã. Reportagens, depoimentos, fotos amareladas pelo tempo. A maioria dos documentos oficiais era inconclusiva; a polícia jamais encontrou pistas sólidas, e o caso havia sido arquivado como mais um mistério sem solução. Mas, agora, havia algo novo: a ligação entre Fátima e Bianca, que poderia ser a chave para tudo.

Enquanto folheava as páginas do caderno de anotações da irmã, uma lembrança inesperada emergiu. Ela se viu, ainda menina, correndo pelo quintal da casa da avó, sentindo o cheiro de terra molhada e o calor do sol. Bianca estava à frente, rindo e chamando-a para brincar. “Vem, Júlia! Vem me pegar!” Era um dia comum, até que um grito cortou o ar. Júlia fechou os olhos, tentando forçar a memória a avançar, mas o grito se dissolveu no vazio, substituído por um silêncio pesado.

Júlia abriu os olhos com brusquidão, sentindo o coração bater acelerado. Por que aquela lembrança parecia tão próxima do relato de Daniel, o paciente da sessão de Fátima? E quem era a menina de vestido amarelo de quem ele falava? Seria Bianca? Ou outra criança, perdida no labirinto dos traumas reprimidos?

Resolveu ligar para Carolina, a amiga repórter, que atendeu após alguns toques.

— Júlia, você está bem? — A voz preocupada do outro lado da linha era um alívio.

— Mais ou menos. Você conseguiu alguma coisa com o delegado?

— Pouca coisa. Eles acham que pode ter sido envenenamento, mas nada confirmado. O delegado Rogério falou que vai te chamar para depor, já que seu nome apareceu nos papéis da Fátima.

Júlia sentiu um frio na espinha.

— Carolina, preciso saber mais sobre os pacientes da Fátima. Especialmente um chamado Daniel. Ele pode ter alguma ligação com o caso da Bianca.

— Vou ver o que consigo. Mas, Júlia, toma cuidado. Se alguém matou a Fátima por causa do que ela sabia, não vai gostar que você esteja fuçando nisso.

Elas se despediram, e Júlia voltou ao computador, decidida a não descansar enquanto não fizesse sentido daquilo tudo. Abriu o navegador e buscou nos arquivos do jornal qualquer referência a Daniel, pacientes da doutora Fátima, ou casos de desaparecimento infantil na região. Encontrou algumas matérias genéricas, mas nada concreto.

Já era noite quando decidiu sair para uma caminhada, tentando organizar os pensamentos. As ruas do centro estavam vazias, as luzes dos postes desenhando sombras longas e inquietantes no asfalto. Cada passo parecia ecoar os próprios pensamentos: e se Fátima tivesse realmente chegado perto de descobrir algo grande? Algo que envolvia mais do que apenas memórias individuais, talvez uma rede de segredos enterrados, traumas compartilhados, e silêncios cúmplices?

Ao voltar para casa, encontrou um envelope por baixo da porta. O papel era grosso, sem remetente. Com mãos trêmulas, Júlia rasgou a lateral e encontrou uma folha dobrada ao meio. Dentro, uma mensagem digitada, sem assinatura:

“Não mexa onde não deve. O passado deve ficar enterrado.”

O sangue gelou. Júlia olhou em volta. Ninguém na escada, nenhum barulho no corredor. O medo era real, concreto. Mas também era combustível: agora, mais do que nunca, ela sabia que estava no caminho certo.

Subiu ao quarto, pegou o diário antigo de Bianca e folheou as páginas até encontrar uma anotação esquecida. Letras infantis, datadas de dois dias antes do desaparecimento:

“Hoje brinquei com o Daniel. Ele me contou um segredo.”

O coração de Júlia quase parou. A ligação era clara, direta, impossível de ignorar. Daniel não era apenas um paciente qualquer—ele estava, de alguma forma, envolvido no sumiço de Bianca. E, talvez, no assassinato de Fátima.

Sentada na beira da cama, Júlia sentiu as lágrimas brotarem. Não de tristeza, mas de um misto de raiva e esperança. Era hora de revisitar o passado, mesmo que isso significasse abrir feridas jamais cicatrizadas. Era hora de enfrentar os ecos da infância.

E, ao longe, ela intuía: cada resposta traria consigo novas perguntas, e cada memória desenterrada tornaria o presente ainda mais perigoso. Mas Júlia não recuaria. Não mais.

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