A Colecionadora de Memórias

A Colecionadora de Memórias

O Corpo na Casa da Colina

Capítulo 1

O Corpo na Casa da Colina

(Presente)

A neblina ainda pairava baixa sobre a pequena cidade de São Lourenço quando Júlia Reis estacionou seu carro na estrada de terra que levava à casa de Fátima Drummond. O relógio no painel marcava 7h22, e o céu prometia mais chuva. Júlia olhou para o portão de ferro enferrujado e sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Não era apenas o frio da manhã ou a umidade grudenta que se infiltrava por baixo do casaco. Era a sensação de que estava prestes a pisar em território proibido.

A casa da colina era conhecida por todos na cidade, mas raramente visitada. Envolta por árvores antigas e um jardim descuidado, era um casarão de traços neoclássicos, com janelas altas e persianas verdes. Durante anos, ali funcionara o consultório de Fátima, local de peregrinação para quem buscava reconstruir a própria história ou, às vezes, enterrá-la de vez.

Júlia hesitou diante do portão, lembrando-se do telefonema da noite anterior. A voz nervosa de sua amiga Carolina, repórter do jornal local, ainda ecoava em sua mente: “Foi a Fátima, Júlia. Encontraram ela morta. Ninguém sabe o que aconteceu. Dizem que a polícia já está lá. Você precisa vir.”

Apesar do receio, a jornalista sabia que aquela era sua única chance de entender o que realmente tinha acontecido—não apenas com Fátima, mas com sua própria vida. O desaparecimento da irmã, Bianca, era uma ferida aberta, e Fátima, dizia sua mãe, era a única capaz de ajudar Júlia a encontrar as respostas que faltavam. Agora, a psicóloga estava morta.

Júlia empurrou o portão, que rangeu alto, e subiu pela trilha de pedras, desviando de poças lamacentas. O portão principal da casa estava entreaberto, e, do lado de dentro, vozes abafadas discutiam. Um carro da polícia e uma viatura do IML estavam estacionados na entrada, as luzes piscando em silêncio. Do lado de fora, um policial de expressão cansada anotava algo em um bloco, enquanto dois peritos conversavam baixinho.

Ela foi recebida por um olhar desconfiado do policial.

— Desculpe, moça, não podemos deixar ninguém entrar — disse ele, firme.

Júlia se apresentou como jornalista, mas percebeu que aquela informação não era bem-vinda. O policial estudou-a por um instante e, vendo sua insistência, decidiu consultar alguém lá dentro. Minutos depois, um homem de meia-idade, terno amarrotado e semblante fechado, surgiu à porta. Era o delegado Rogério Nogueira, conhecido pela rigidez e pelo olhar clínico.

— Júlia Reis? — perguntou, conferindo uma folha de anotações. — Você era paciente da doutora Fátima?

— Não. Mas preciso falar com o senhor — respondeu, tentando controlar o nervosismo. — Minha irmã desapareceu há anos. Fátima era a única pessoa que poderia me ajudar.

O delegado suspirou, como quem já ouvira variantes daquela história muitas vezes. Mas o nome de Bianca pareceu acender algo em sua memória. Ele fez um gesto para que ela o acompanhasse até o saguão.

O interior da casa era uma mistura de requinte antigo e desordem recente. Livros empilhados em prateleiras, quadros tortos, papéis espalhados sobre mesas e poltronas. O cheiro de café frio misturava-se ao de mofo e álcool. No centro da sala, uma fita de isolamento delimitava o local onde o corpo de Fátima fora encontrado. Havia manchas escuras no tapete bege e, ao lado do sofá, um copo de vinho quebrado.

O delegado mostrou-se mais cordial.

— Encontramos a doutora Fátima por volta das seis da manhã. A empregada chegou para o trabalho e a encontrou já sem vida. Não há sinais claros de violência, mas precisamos esperar o laudo do IML para confirmar as causas. Aparentemente, ela estava sozinha—mas isso pode mudar, dependendo do que descobrirmos.

Júlia percorreu a sala com os olhos, tentando absorver cada detalhe. Havia um gravador portátil caído ao lado do sofá, uma pasta de couro aberta, páginas soltas preenchidas à mão. Reconheceu a caligrafia elegante de Fátima e sentiu um aperto no peito. Quantos segredos estariam escondidos ali?

— Doutor Rogério, posso olhar os papéis? — perguntou, com cautela.

O delegado hesitou, mas acabou permitindo que ela desse uma breve olhada, sob supervisão. Júlia folheou algumas páginas, reconhecendo nomes de pacientes, datas, anotações codificadas. Em uma delas, encontrou uma referência: “Sessão com Daniel — possíveis traumas de infância, bloqueios recorrentes, investigar vínculo com caso Bianca.”

O nome da irmã estava ali, misturado aos casos de outros pacientes. Júlia sentiu o coração disparar. Por um instante, esqueceu-se do medo e da dor, tomada apenas pela necessidade de saber mais.

Enquanto isso, os peritos recolhiam amostras, fotografavam o ambiente, catalogavam objetos que poderiam servir como evidência. A atmosfera era tensa, pesada. Cada um parecia carregar o peso de suas próprias suspeitas.

A jornalista sabia que teria pouco tempo antes que tudo fosse lacrado e levado para a delegacia. Decidiu memorizar o máximo possível: a disposição dos móveis, os objetos pessoais de Fátima—a fotografia antiga sobre a lareira, mostrando a psicóloga ao lado de duas meninas sorridentes; o porta-retratos no corredor, com uma dedicatória rabiscada no verso; e, principalmente, a pasta de couro, que parecia conter informações cruciais.

Antes de sair, Júlia cruzou o olhar com a empregada, que chorava baixinho na cozinha. Aproximou-se com cuidado.

— Dona Maria? — sussurrou.

A mulher ergueu os olhos vermelhos.

— A senhora Fátima era boa demais. Tanta gente vinha aqui, cada um com uma dor diferente… Ela ajudava todo mundo. Mas nos últimos dias, ela andava estranha. Preocupada, sempre olhando pela janela… Recebia telefonemas à noite. Eu ouvi ela dizer que descobriu alguma coisa perigosa.

Júlia agradeceu e saiu da casa sentindo o peso de uma responsabilidade inesperada. Agora era pessoal. Fátima não era apenas uma vítima; era a chave para o mistério que assombrava sua família. E, ao que tudo indicava, sua morte estava diretamente ligada a segredos muito maiores do que um simples crime.

Do lado de fora, a neblina começava a se dissipar, mas Júlia sabia que os verdadeiros mistérios apenas começavam a se revelar. Ela prometeu a si mesma que não descansaria enquanto não trouxesse à luz toda a verdade sobre a morte da colecionadora de memórias—e, quem sabe, sobre o destino de Bianca.

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